Ninguém sabe. Mas dá para ver que Calero não atirou a esmo e seu alvo não era exclusivamente Geddel.
Há coisas nebulosas, coisas intrigantes e coisas escandalosas no caso Geddel-Calero.
O escândalo é fácil de ser localizado.
Um ministro procura achacar outro para resolver um problema pessoal, numa absurda tentativa de coação do privado sobre o público. Quer dar uma carteirada e sair na boa. Nada mais antirrepublicano. Crime grave, ainda mais porque cometido no centro nervoso da Presidência, de modo infantil e presunçoso, indiferente ao bom-senso, como se quisesse provocar um vendaval de detritos e sujeira. O ex-ministro Geddel fez, literalmente, uma porcada, ou uma porcaria.
Em reação, o ministro-vítima sai pelo Palácio gravando conversas com seus pares e com o próprio Presidente. Falar em deslealdade, no caso, é cabível, ainda que tenha se tratado de uma manobra de autoproteção. Mas não é atitude razoável em um cargo como o de ministro de uma República na qual as coisas públicas devem ser tratadas publicamente. Temer falou em indignidade. Tem certa razão. Pode nem ser tanto, mas choca.
O nebuloso tem a ver com a atitude de Calero. Por quê? Não só gravou como fez questão de divulgar para o mundo que o fez. Ganhou uma projeção que jamais teve ou teria, vestindo o cômodo figurino do herói, do perseguido, do íntegro. Calero não só quis ser honesto, mas parecer sê-lo. Com qual finalidade?
Como há sempre um dia após o outro, a operação parece ter sido desenhada para organizar o próximo passo ou outra jogada de efeito mais à frente. Quem sabe uma candidatura? Um livro de memórias? Um filme?
Ninguém sabe. Mas dá para ver que Calero não atirou a esmo e seu alvo não era exclusivamente Geddel. Na mira, estava também Eliseu Padilha, ministro muito mais poderoso, além evidentemente do próprio presidente. Estava, portanto, o núcleo duro do Governo Temer.
Não se tratou de um ataque gratuito ou da ação de um lobo solitário, por mais que se deva dar ao ex-ministro o direito de se proteger do lamaçal que escorre em Brasília e dentro do Palácio. Ele mesmo disse que foi “aconselhado por amigos da Polícia Federal”. Deve ter ouvido muita gente antes de agir, o que sugere uma ação articulada.
O intrigante está aí. Calero gravou conversas estratégicas e explosivas, o que faz com que seja inevitável a pergunta sobre suas motivações e sobre as consequências de seu ato. Os petardos do ex-ministro podem ter sido qualquer coisa, mas não foram ingênuos nem aleatórios, e muito menos para defender a própria pele.
Até aí, matéria para um bom folhetim de suspense. A questão de base — o tráfico de influência —, porém, persiste, a assustar até os mais vetustos fantasmas do Palácio.
Ela mostra uma das dificuldades principais do Governo Temer, talvez sua maior fragilidade: a escolha de colaboradores. Seu déficit nessa área é brutal. Ou os escolhidos têm o rabo preso, ou são inadequados, ou são fracos de dar dó. Salvam-se poucos: Meirelles, Jungmann, Serra, Roberto Freire, Flávia Piovesan — dá pra contar nos dedos.
Com uma equipe de poucos que podem fazer a diferença, Temer tem de enfrentar um mar revolto e turbulento, em cujas praias repousam uma economia estagnada, milhões de desempregados e uma sociedade alvoroçada. É difícil vislumbrar como conseguirá fazer a travessia.
A chamada classe política, que deveria mostrar racionalidade superior e capacidade de interpretar os sinais do tempo, não o ajuda e ameaça, a todo momento, destroçá-lo de uma só vez ou comê-lo pelas bordas. O próprio presidente, figura de proa dessa classe, parece perdido, sem saber que caminho seguir ou que tom dar ao coro dos insaciáveis.
Não seria mais razoável o presidente começar de novo, enquanto há tempo? Reorganizar o governo, recheá-lo de bons técnicos e de políticos consistentes, traçar metas generosas e emprestar qualidade à comunicação pública, para tentar se ligar melhor à sociedade? Difícil, mas não impossível, até porque não depende exclusivamente dele. Onde estão os que o apoiaram em nome dos interesses gerais da nação e não de olho no próprio umbigo?
Aí, o cidadão olha desesperadamente para fora do governo, para além dele. Procura forças sociais com vocação reformadora e espírito democrático. Não acha. Procura lideranças que consigam conjugar todos os tempos verbais. Não acha. Procura gente que queira debater com serenidade, estudar o país e o mundo, disseminar cultura política democrática e senso de responsabilidade. Não acha, ou acha poucos, quase sempre caçados pelos militantes da intransigência.
Dirige-se então às oposições e se depara com um elenco conhecido: demagogos de prontidão, gente que se mexe sem sair do lugar, líderes histriônicos que se dão ares de providenciais, que prometem passar o país a limpo e esquecem o quanto de sujeira eles próprios produziram, que circulam, falam e gesticulam como se fossem os salvadores da pátria e trouxessem o futuro nas mãos, valendo-se dos mesmos expedientes e da mesma retórica surrada de sempre, que prometem partir do zero e mostrar como se governa, tal como heróis da modernidade perdida.
É uma oposição temperada com desejo de vingança e ressentimento, que trabalha para devolver a Temer o impeachment que ele protagonizou. Pode ser que venha a acontecer, mas, se assim for, o barco continuará o mesmo, o mar permanecerá revolto e as praias não sairão do lugar. Ao menos no curto prazo.
Os déficits são enormes. Falta convicção social de que a representação democrática é um valor. Faltam partidos com musculatura para agregar grupos e pessoas em torno de programas factíveis de reforma. Faltam bons sistemas educacionais, regulação democrática dos meios de comunicação e redução da publicidade manipuladora para que se dissemine capacidade crítica entre os cidadãos. É um vazio cívico que tem sido preenchido por formas light ou hard de autoritarismo e por postulações próximas da barbárie, da intolerância e da grosseria preconceituosa.
Está difícil. Nunca é fácil.
Sempre há um excesso de pó e fumaça na vida real, a saturá-la e encobri-la. A realidade é uma combinação marota de verdade e ilusão, essência e aparência. Há uma “pseudoconcreticidade” embaçando a concreticidade. Enxergamos sempre paisagens na neblina, o que nos impede de desvelar aquilo que surge. Nem tudo é o que parece.
Lutar e brigar há que. Mas a batalha mais importante é a da compreensão: a crítica do real. Mais importante porque mais difícil e porque hoje se faz em campo aberto, sujeito a muitas interveniências, narrativas, ressignificações e exageros. Quando se consegue limpar o quadro, a paisagem já voltou a mudar.
Talvez por isso tanta gente opte por gritar, protestar, advertir, ameaçar, resistir, denunciar. Busca-se assim um lugar ao sol, em nome da sensação de que se está pondo algo em movimento.
O verdadeiro movimento, porém, passa ao largo, silencioso, imperceptível.
Não há um antes e um depois, tipo primeiro a razão depois a luta. Lutar às cegas é se candidatar à derrota. Lutar é compreender e compreender é lutar. A realidade é uma só, verdade e aparência, e os que querem compreendê-la precisam tratá-la como um todo. A verdade nasce daí, com todos os senões, limites e contradições.
* Marco Aurélio Nogueira: Cientista político por profissão e por paixão. A política liberta, mas também pode ser uma prisão. Democrata e gramsciano por convicção, socialista por derivação. Corintiano de raiz. Atualmente, coordena o Núcleo de Estudos e Análises Internacionais-NEAI da UNESP. Seu livro mais recente é As Ruas e a Democracia. Ensaios sobre o Brasil contemporâneo (Contraponto/FAP, 2013).
Fonte: http://ano-zero.com/caso-geddel-calero/