A rápida recuperação de Bolsonaro antecipou o fim da trégua solidária e as campanhas devem voltar a mostrar suas diferenças
Uma coisa é ser solidário. Outra, bem diferente, é deixar a solidariedade borrar o fundamental.
Afastado temporariamente Jair Bolsonaro, ficaram suas ideias e o movimento que ele representa. As estrelas diziam que o bolsonarismo ganharia alento e visibilidade com o atentado. Não foi o que indicaram as primeiras sondagens (DataFolha). As campanhas adversárias, porém, ficaram desarvoradas.
Acontece que o candidato está em franca e rápida recuperação. Posa à vontade no hospital, simulando armas em punho. Já ensaia os primeiros passos e está a cada dia melhor. O repouso forçado, em vez de atrapalhá-lo, parece que o ajuda, ao poupá-lo de alguns debates e dar-lhe gás para o segundo turno. Poderá fazer campanha do hospital, do mesmo modo que Lula faz da cadeia.
O fim da trégua solidária ficou desse modo antecipado. A troca de pancadas entre os candidatos terá de ser recalculada. Impossível atacá-lo como se fez antes. A beligerância será reduzida, em nome da democracia e da “paz social”. Em decorrência, espera-se que surjam mais espaços para a apresentação de propostas e diálogos equilibrados.
Nesse caso, poderemos ver melhor o que não aparece tanto: há mais convergências que divergências entre os postulantes à Presidência, indicação de que existe uma ampla zona de entendimento no campo democrático reformista. Agora é ver se isso passa para o plano prático e consegue ser assumido pelos próprios candidatos, de modo a eliminar o que há de personalismo e intransigência entre eles.
O fim do mundo não está chegando, que há um futuro possível mais à frente, pedindo para ser politicamente decifrado e projetado. Ideias compartilhadas podem dar ensejo a uma ideia mais articulada de país. A solidariedade e o repúdio à violência valorizam o diálogo, a racionalidade e a generosidade, elementos básicos de uma sociedade democrática.
O próprio Bolsonaro talvez saia melhor do atentado: mais humano, mais convencido de sua fragilidade, mais capacitado para perceber que o acirramento de ânimos e emoções não leva a lugar nenhum, só complica o que já é bastante complicado. Seus coordenadores terão de acertar o tom da campanha daqui para frente. Entre eles também há radicais e moderados, pombas e falcões. Qual vertente irá prevalecer é algo em aberto.
Bolsonaro e o bolsonarismo continuarão a explorar o reacionarismo de alguns, o mau humor de outros, as frustrações, o ressentimento, a ignorância política e o cansaço cívico das pessoas, o machismo que pulsa firme na sociedade. Continuarão falando de democracia sem valorizá-la ou traduzi-la em termos sistêmicos, culturais e de governança. Permanecerão apostando na ordem e na autoridade em vez de no diálogo, desprezando a busca de união, serenidade e moderação. Não poderão fugir disso, sob pena de perderem identidade. Mas há mais de uma maneira de seguir essa pauta.
É verdade que o general Mourão, seu vice, passou a falar de modo mais equilibrado e prudente, indo além dos anátemas do candidato. Ele, porém, mistura a fala moderada com menções a “autogolpes”, a heróis torturadores e a intervenção militar em caso de “anarquia generalizada” sem deixar claro o que entende por isso. A expectativa é que o general enquadre o capitão e consiga por mais substância na mesa. Conseguirá?
Tudo somado, também será preciso que alguém acalme os bolsonaristas, que não se cansam de bater como loucos na “esquerda”, misturando no mesmo saco comunistas, marxistas, socialistas liberais, liberais progressistas, libertários e petistas, o que só faz fomentar ódio e confusão. Em vez de consensos que sinalizem uma direção coletiva, criam guetos e áreas de penumbra, nas quais somente os “escolhidos” terão lugar.
É uma predisposição que colide com a democracia, hostiliza a sociedade civil e empobrece a política. De uma maneira tão ostensiva e tão contrária aos tempos que não parece reunir condições de se tornar vitoriosa.
O fundamental, que não pode ser borrado, é que o bolsonarismo nada sozinho numa dada direção, ao passo que todos os demais protagonistas da política nacional nadam em outra. Situação essa que precisa ser mostrada e demonstrada pelo debate político, solidariedade à parte. Dissociar-se de Bolsonaro é importante, não para satanizá-lo, mas para valorizar a democracia.
De políticos kitsch, mitos, santos salvadores, heróis, mártires e “pessoas honestas” a história brasileira está saturada. A transparência, a clareza de propósitos, a serenidade, a firmeza democrática e a honestidade pessoal estão batendo à porta, pedindo passagem. Com elas, recuperaremos o valor da negociação política – das mediações – para que se reforme o que precisa ser reformado. Sem elas, o relógio andará para trás.