Entre colegas de Pazuello, saída do ministério seria alívio, mas críticos não acreditam que ela diminua o estrago feito pela pandemia
Caro leitor,
a crise sanitária, as críticas à gestão de Jair Bolsonaro do combate à covid-19 e a decisão do ministro Edson Fachin de anular as sentenças que condenaram o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva reacenderam em generais desvinculados de Jair Bolsonaro o receio do retorno da esquerda ao poder. Alguns procuram se afastar do estigma de terem apoiado um governo que a oposição ora compara ao de Chaves, o coronel que governou a Venezuela, ora ao de outro militar, o general Leopoldo Galtieri, da Argentina.
O prócer do Exército argentino foi responsável por uma das maiores desmoralizações armadas do século passado: a derrota na Guerra da Malvinas. Esse desastre nacional retirou os militares da política do país, depois de a terem dominado por mais de 50 anos, de forma quase ininterrupta. Era 1982. Galtieri lançou mão de uma aposta: a invasão das Ilhas Falkland galvanizaria o país, unindo a nação vizinha em torno de seu governo. Não contava com a resposta britânica. Assim como os coronéis gregos não esperavam a reação turca quando, em 1974, resolveram se envolver na política cipriota.
Na análise dos descontentes com o governo, Bolsonaro e os generais que o apoiam criaram as condições para a crise quando trataram as decisões da Saúde como se nelas houvesse espaço para palpiteiros desinformados e inconsequentes. Nomearam um general amigo, paraquedista como Bolsonaro e tantos outros do Planalto, para cuidar do desafio. A manobra do grupo de amigos da Brigada Paraquedista parecia imaginar que o protagonismo de Eduardo Pazuello daria o crédito pela vitória sobre a pandemia a um general, inaugurando-lhe – quem sabe? – um futuro político, como senador ou governador.
Faltou combinar com o vírus. O Sars-Cov-2 não perdoou o descaso bolsonarista com a doença. Não são poucos os oficiais que se queixam do fato de que mantém em suas unidades protocolos rigorosos de segurança sanitária – ignorados no Planalto pelo presidente e seu entourage. Após um ano de pandemia, dificilmente, cada militar não conhece alguém – familiar ou não – que tenha sido atingido de forma grave pela doença.
Muitos tiveram colegas, amigos e familiares mortos; outros que sobreviveram ao coronavírus estão sequelados, com as perdas parciais da audição, do olfato ou do paladar, além do comprometimento da capacidade pulmonar e de locomoção. O coronel Ubiratan Ângelo, ex-comandante da PM do Rio, perdeu 70% da audição após passar 47 dias internado em razão da covid. Existe quem entrou em coma e dele não saiu até hoje. No Exército, entre os militares da ativa, o total de mortos é de cerca de 40. Mas quem suporta o maior peso da pandemia são os seus 77 mil homens da reserva.
Foi o caso do coronel Fanoel Santos, cavalariano da turma de 1981 da Academia Militar das Agulhas Negras. Ele é lembrado por seus ex-alunos do Centro de Preparação de Oficiais da Reserva (CPOR), de São Paulo, como um instrutor respeitado, duro, mas que estava sempre ao lado deles nos acampamentos e sabia o que estava fazendo. Com chuva ou frio, motivava a todos em suas “voltas pelo mundo”, da sede do CPOR à marginal do Tietê até retonar ao quartel, em Santana. “Ele era um cara que dava a cara a bater. Isso é uma tristeza para todos que o conheceram”, contou o jornalista Wilson Baldini Júnior, repórter do Estadão que teve Fanoel como seu instrutor em 1986.
Fanoel lutava contra a covid-19 desde dezembro. Tinha 62 anos e apoiava Bolsonaro. A doença o levou há uma semana. Há mortos e feridos aos borbotões pelo País e um general na Saúde e um capitão no Planalto que não visitam os hospitais para agradecer aos médicos e levar conforto aos doentes. Até o general Patton – aquele que esbofeteou um soldado com shell shock e foi interpretado no cinema por George C. Scott – visitava enfermarias para honrar seus heróis. E quem enfrentou o vírus, como pedia o presidente? Que palavra receberam do presidente? Um ‘e daí’? Um ‘eu não sou coveiro’. Eles merecem indiferença? Um líder não pode fazer pouco da vida de seus compatriotas.
Apoiadores de Bolsonaro lotam ruas, festas e praias para depois encher hospitais. Ocupam os mesmos leitos que tratam de quem se contaminou no trabalho ou pelo contato familiar. Ao ver o presidente comparecer de máscara a uma reunião no Planalto, na quarta-feira, um general ouvido pela coluna comemorou. Pensou que, talvez, a novidade sinalizasse para uma Presidência que procuraria a moderação, a fim de recuperar apoios que ameaçam cair no colo de sua nêmesis, o petista Lula. Sua ilusão durou algumas horas. A reação de Eduardo Bolsonaro ao aconselhar um uso heterodoxo das máscaras desvelou outra vez a natureza do governo. É conhecido o brocardo: o fruto não cai longe da árvore.
Se os militares sabem o que esperar de um governo Bolsonaro – aumentos salariais, verbas blindadas, diretorias de estatais e prestígio –, as incertezas sobre o seu futuro fazem com que se interessem sobre o que pensam as outras forças políticas que disputarão com o presidente a eleição de 2022. No PSDB, encontram a defesa da criação de uma Guarda Nacional, o que levaria ao afastamento das Forças Armadas de parte das operações de Garantia de Lei e Ordem. Fernando Henrique Cardoso também já deixou claro que considera um privilégio a manutenção da integralidade e da paridade nas aposentadorias.
E o PT? Em artigo recente, o ex-deputado federal José Genoino afirmou que não “há como separar as Forças Armadas da catástrofe que é o governo Bolsonaro”. Ele defendeu a introdução de uma regra de quarentena para que militares possam ocupar cargos públicos – a medida seria extensiva a juízes e promotores. Ela impediria, por exemplo, não só que Pazuello fosse ministro ainda sendo general da ativa, mas o obrigaria a estar um certo tempo na reserva antes de ocupar a função. A medida encontra apoio de outros líderes do partido, como o ex-governador mineiro Fernando Pimentel.
Não só. Genoino defende a adoção do modelo americano, com cada Força tendo um chefe de Estado-Maior subordinado ao ministro da Defesa, e a criação de uma Guarda Costeira e de uma polícia de fronteiras – como nos EUA –, para retirar as Forças Armadas das ações de Garantia de Lei e Ordem. Há ainda receios entre os petistas de que Bolsonaro se radicalize diante da perspectiva de derrota para um candidato do centro ou de esquerda em 2022. O próprio presidente reforça esse temor, como o leitor viu no editorial Nem o Diabo, publicado na edição de domingo do Estadão.
A crise na Saúde pode não ser suficiente para derrotar Bolsonaro. O desastre militar fez Galtieri perder o poder. Entregar a cabeça de Pazuello para se salvar do pesadelo que seu nome evoca não fará diferença para um presidente que não sabe a distinção entre comandar e governar. É verdade que a retirada do general da Saúde agradaria aos colegas que se incomodam com sua presença no ministério –há semanas já havia até no Planalto quem reconhecesse o erro do governo com as vacinas. Mas isso não encerra a novela, assim como o torpedeamento do cruzador Belgrano não concluiu o drama das Malvinas.
É que Bolsonaro continuará à frente de um governo sem propor nada para deter o vírus que ameaça os brasileiros, além da vacinação atrasada. Resta saber se os generais vão acompanhar o presidente até o fim, apoiando tratamentos sem eficácia científica comprovada e o boicote ao distanciamento social e ao uso de máscaras. O erro nas vacinas causou demora na imunização, abrindo espaço para milhares de novas mortes. Já são quase 300 mil. Não há ministro novo que possa remediá-las. O cardeal Richelieu dizia ser preciso ouvir muito e falar pouco para se agir bem no governo. Definitivamente, este não é o caso de Bolsonaro.
*Marcelo Godoy é jornalista formado em 1991, está no Estadão desde 1998. As relações entre o poder Civil e o poder Militar estão na ordem do dia desse repórter, desde que escreveu o livro A Casa da Vovó, prêmios Jabuti (2015) e Sérgio Buarque de Holanda, da Biblioteca Nacional (2015).