Investigado pelo Supremo, Chagas pressiona senadores a apoiarem CPI contra o STF; ele critica decisão de ministro Kassio Nunes sobre ficha limpa
Há muitas ilusões em nossa República. E uma delas é a crença do comprometimento de muitos militares bolsonaristas com a democracia. Só isso pode explicar a razão do silêncio diante de manifestações como a do general Paulo Chagas, que usa a patente para se identificar nas suas redes sociais e com ela disputou as eleições para o governo do Distrito Federal, em 2018, obtendo 7,5% dos votos. Chagas não comanda tropa há quase 14 anos, mas tem 161 mil seguidores no Twitter, vários deles fardados.
O general comandou sua carga outra vez contra o Supremo Tribunal Federal, o que já o fez ser alvo de busca determinada pelo ministro Alexandre de Moraes em razão de ameaças à Corte. Chagas questionou a decisão do ministro Kassio Nunes, que ele chamou de “homem do presidente no STF” por “antecipar” o retorno à política de atingidos pela Lei da Ficha Limpa. Pregou pressionar os senadores por uma CPI da Lava a Toga. “Se não houver reação, ficarão caracterizados o conluio e o abandono dos princípios republicanos, indicando aos quartéis os sintomas da anomia!”
A tal anomia que ele vislumbra é o que autorizaria os liberticidas a destruir a democracia e a dar o golpe. Outros generais já fizeram raciocínio semelhante, como o vice-presidente, Hamilton Mourão, quando ainda era candidato. E alguns da reserva – mais discretos – voltaram ao tema na semana passada. É a tese do autogolpe do presidente, com apoio das Forças Armadas. Chagas escreveu: “Uma intervenção militar na política só se justifica se for para evitar mal maior do que o que causará e, além disso, tem que ser isenta de vieses políticos e, muito menos, promotora de candidatos a ditadores.”
A frase do general é um primor de raciocínio tortuoso. Primeiro, porque não há golpe sem “viés político”. Todo golpe é um ato político. No mundo de Jair Bolsonaro e de Chagas todos têm ideologia, exceto seu grupo. Pouco importa a falsidade das premissas, pois nenhum golpe é dado de acordo com a Constituição, se o que interessa é divulgar a ideia de que o Brasil não tem outro jeito, senão pela força e arbítrio. Entretanto, ninguém estará seguro em um país em que é possível se achar que as disputas entre cidadãos podem ser resolvidas fora da lei. Chagas parece desconhecer que o devido processo legal garante desde a propriedade até a vida.
Semeiam-se espantalhos pelo País, e o da anomia é só um deles. Trata-se de uma escolha. Assim como escolha é reverenciar um torturador como Carlos Alberto Brilhante Ustra, que executou prisioneiros sob a sua guarda, em vez de lembrar o general Manuel Luiz Osorio. O patrono da Cavalaria foi o primeiro brasileiro a atravessar o Rio Paraná e a pisar no Paraguai. Antes, escreveu aos soldados: “Não tenho necessidade de recordar-vos que o inimigo vencido e o paraguaio desarmado ou pacífico devem ser sagrados para um exército composto de homens de honra e de coração”.
É por demais conhecida ainda – e esquecida por alguns generais – outra lição de Osório: “É fácil a missão de comandar homens livres: basta mostrar-lhes o caminho do dever.” Depois de Bolsonaro flertar com o golpe ao discursar em manifestação em frente ao quartel-general do Exército, nenhum dos que ocupam cargos no governo demonstraram publicamente contrariedade pela tentativa do chefe de arrastar as Forças Armadas para o turbilhão da polarização política nacional. Um Exército só representará todo o seu povo enquanto estiver acima das disputas partidárias; sem isso, será mero instrumento de luta de facções.
Nos Estados Unidos, dez ex-secretários da Defesa – republicanos e democratas – condenaram a tentativa de apoiadores de Donald Trump de envolver os militares como juízes no processo eleitoral. Lá o exemplo de comprometimento com a Lei foi dado pelo chefe do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas, general Mark Milley ao lembrar, no dia dos veteranos, que ele e seus subordinados não prestam juramento a um líder, mas à Constituição. Eis o exemplo que mostra a todos o caminho do dever.
É ainda o exemplo que fez o chefe do Estado-Maior do Exército americano, general James C. McConville, encorajar seus subordinados a se vacinarem contra o coronavírus, assim como fez o comandante do Corpo de Fuzileiros Navais, David H. Berger. Ambos se deixaram fotografar sendo imunizados, algo que, dificilmente, veremos no governo de generais, como o da Saúde, Eduardo Pazuello.
Pazuello – nunca é demais repetir – é o gênio da logística que não conseguiu comprar seringas porque tentou cancelar a lei da oferta e procura e não encomendou vacinas por acreditar que a indústria farmacêutica dependia de nós. Tentou com o chefe obrigar os brasileiros a assinarem um termo de consentimento para a vacinação, espalhando descrédito sobre os imunizantes. Quando descobriu milhões de testes de covid-19 no depósito com a data de validade quase vencida, acreditou que a solução seria ampliar a data de validade. Tem dono de mercado que faz igualzinho quando a validade das salsichas está para vencer…
Assim está a Saúde brasileira. Empresários e trabalhadores ficam condenados ao isolamento social e às mascaras por falta de vacina e de seringas. Corre-se o risco nas empresas menores de um caso da doença paralisar o negócio e pôr em perigo os demais funcionários. E, enquanto as famílias vivem apreensivas e acompanham 50 países iniciarem a vacinação de seus compatriotas, a de Pazuello tem uma razão para comemorar. É que Stephanie dos Santos Pazuello, filha do ministro, que havia sido contratada por Marcelo Crivella para um cargo na prefeitura do Rio, foi mantida empregada na Secretaria de Saúde do Município pelo prefeito Eduardo Paes.
O ministro Pazuello se comporta aqui como o chefe. Há sempre um filé para os seus. E, quando é exposto pela imprensa, tenta desqualificar o trabalho dos jornalistas. Logo após o fracasso da compra das seringas, a assessoria do general negou o problema. Mas a Saúde pediu ao Ministério da Economia que os fábricantes fossem impedidos de exportar a produção que se recusaram a vender por preço abaixo do mercado. Esse é o governo que mantém a vedação aos congelamentos de gastos militares com aviões e blindados, mas permite a possibilidade de que o dinheiro para comprar vacinas contra a covid-19 seja contingenciado.
Se manda quem tem o dinheiro, quem manda no governo Bolsonaro são generais que, como Pazuello e Chagas, parecem gostar de moldar os fatos e a realidade à sua vontade e às suas ideias. Devia ser desnecessário dizer que a fantasia de Chagas sobre um golpe sem ditadores só existe quando o alvo é a própria tirania. Fora disso, jamais um golpe deixou de propor um ditador: fosse Luís Bonaparte ou Costa e Silva. Os militares assumiram o poder em 1964 com a promessa de defender a democracia; criaram uma ditadura de 20 anos. Com Bolsonaro, muitos voltaram ao poder. E, assim como na França, após o retorno dos Bourbons, em 1815, aqui também Talleyrand poderia dizer: “Ils n’ont rien appris, ni rien oublié”, “eles não aprenderam nada, nem esqueceram nada”.
*Marcelo Godoy é jornalista formado em 1991, está no Estadão desde 1998. As relações entre o poder Civil e o poder Militar estão na ordem do dia desse repórter, desde que escreveu o livro A Casa da Vovó, prêmios Jabuti (2015) e Sérgio Buarque de Holanda, da Biblioteca Nacional (2015).