Chamado de ‘pitoresco’ por Pujol, o presidente queria alguém que lhe fosse leal no comando da Força Terrestre, no fim, escolheu entre os 3 generais mais antigos
uma semana antes de ser demitido do Ministério da Defesa, o general Fernando Azevedo e Silva procurou o general Augusto Heleno. Revelou seu desconforto com o presidente por Jair Bolsonaro ter pela enésima vez se referido às Forças Armadas como sua guarda pessoal, como se a lealdade delas fosse à um líder e não à Constituição. Bolsonaro estava em plena campanha contra os governadores e as medidas restritivas para o combate à covid-19. Foi ao Supremo Tribunal Federal contra o toque de recolher, enquanto o deputado federal Vitor Hugo (PSL-GO) tentava obter para o capitão o domínio das polícias estaduais.
No sábado, dia 27, Bolsonaro esteve reunido no Alvorada. Seus interlocutores negaram que tivesse tratado da reforma ministerial. Só no dia seguinte ele teria decidido fazer a troca na Defesa, ainda que quase ninguém acredite que o presidente tenha resolvido em 24 horas montar uma complicada dança das cadeiras. O movimento na Esplanada congelou Brasília nos dias seguintes e fez com que os brasileiros incrédulos redescobrissem as listas de antiguidade dos oficiais generais, como não se fazia desde os anos 1970. Seu esboço, no entanto, começara a ser traçado muito antes.
Edson Leal Pujol só havia se tornado o comandante do Exército porque o general Augusto Heleno soube contornar a primeira intriga feita contra Pujol, ainda em 2018, quando ele dirigia o Departamento de Ciência e Tecnologia do Exército. O general chamou a atenção do então candidato Bolsonaro sobre os extremos de seu comportamento e a forma como expunha as coisas. “Elas não se enquadram na figura de um candidato a presidente”. Pujol completou: “Bolsonaro tem uma personalidade muito pitoresca. Se ele perdesse um pouco dessa identidade, talvez não tivesse tantos eleitores.”
A fala de Pujol despertou reações entre os oficiais engajados na campanha de Bolsonaro. Heleno pôs panos quentes usando o argumento de que era necessário garantir a unidade dos militares. O episódio, no entanto, ficou arquivado. Escolhido comandante por ser o oficial mais antigo – e o critério de antiguidade foi respeitado com as demais Forças – Pujol se esqueceu do que dissera naquela entrevista. Os generais pensavam então que tinham um governo para chamar de seu e obtiveram vantagens orçamentárias e salariais, além de milhares de cargos na Esplanada.
Bolsonaro, no entanto, nunca dissimulou o que sentia. Deixava claro o desconforto com Pujol toda a vez que este era elogiado pela imprensa em contraste com a reprovação que recebia. Lembrava-se de ter sido chamado de “pitoresco”. E se preocupava com cada notícia sobre os humores dos generais, escalando o general Luiz Eduardo Ramos para auscultar os colegas. Foi na passagem para a reserva do general Antonio Miotto que dois fatos curiosos aconteceram: o primeiro foi o ministro Ramos aparecer fardado na cerimônia e o segundo foi o cumprimento com o cotovelo que Pujol estendeu à Bolsonaro, que ficou com a mão no ar.
O vídeo com a imagem do general preocupado com a covid-19 diante do presidente da gripezinha foi compartilhado por muitos militares, inclusive generais da ativa – um deles chegou a postá-lo no Twitter após retirar a identificação de sua conta. Bolsonaro ficou irritado. Depois, em novembro, quando Pujol se manifestou contra a política nos quartéis, Bolsonaro fez questão de lembrar que o general só comandava o Exército por causa da tinta de sua caneta.
Enquanto arrumava mais uma pessoa para brigar, Bolsonaro assistia ao fracasso de Eduardo Pazuello na Saúde, o que levou o Exército a tentar se dissociar da gestão que levou cloroquina em vez de oxigênio à Manaus e atrasou a vacinação no País. A Força Terrestre exibia seu plano para se manter aberta por meio do uso de máscaras e distanciamento social, além do álcool em gel, tudo o que Bolsonaro e seus ministros se recusavam a fazer.
A estratégia de tratar Bolsonaro como pitoresco não bastava para salvar reputações. Exemplo disso era o ministro da Defesa. Mesmo que Azevedo e Silva tenha em nota defendido a preservação das Forças Armadas como instituição de Estado, seu papel na crise foi questionado até por colegas, como o general Francisco Mamede de Brito Filho. “Participou do famigerado tuíte do general Villas Bôas. Foi assessor de Toffoli em circunstância questionável. Permitiu militares da ativa em cargos civis.” E concluiu: “Fica-se a imaginar o que ele teria preservado. É preciso vir a público com a verdade.”
A verdade é que Bolsonaro foi o escolhido pelos generais como candidato em 2018. Quase todos o conheciam, pois haviam sido contemporâneos de academia ou mesmo colegas de turma, como Pujol, Paulo Humberto Oliveira, Mauro Cesar Cid e Carlos Alberto Barcellos. Sabiam de seu passado no Exército e de seu comportamento no Congresso. Apesar disso, havia euforia com o Cavalão. Basta consultar – se alguém as guardou – as mensagens daquela época no grupo de WhatsApp Aman 77. Raros se opunham à ideia de tê-lo como presidente e quem dizia isso publicamente era atacado pelos colegas.
O general Otávio do Rêgo Barros tornou-se o porta-voz do novo governo. Fora o responsável pela comunicação do comandante Villas Bôas no momento do polêmico tuíte às vésperas do julgamento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Um ano depois de deixar o governo e após o presidente patrocinar a defenestração do ministro da Defesa e da cúpula militar do País, Rêgo Barros escreveu: “O mandatário não é mais um militar. Ele detém, tão somente, uma carta patente que indica ter obtido, em um determinado momento da vida, os requisitos para exercer as funções intermediárias na hierarquia da oficialidade das Forças Armadas.”
O general continuou ainda, em artigo, publicado no dia 31 de março, a descrição que fez de seu antigo chefe: “O amadurecimento intelectual – característica marcante na formação dos atuais chefes – não esteve presente em sua trajetória”. Disse ainda que os atributos aprendidos na caserna por Bolsonaro foram “substituídos por conceitos não aplicados dentro de uma instituição como é o Exército Brasileiro”. “Seu aparente desejo de transformar essa centenária instituição, detentora dos mais altos índices de confiabilidade, em uma estrutura de apoio político, afronta tudo o que defendem as Forças Armadas em sua atitude profissional.”
Um leitor de Weber afirmaria que generais como Santos Cruz, Rêgo Barros, Paulo Chagas e tantos outros que estiveram com Bolsonaro estão dizendo que o presidente dispõe ao mesmo tempo de elementos da dominação tradicional e da dominação carismática, mas ele se apresenta distante da dominação legal-burocrática sine ira et studio. De fato, já se notou que Bolsonaro é avesso à impessoalidade das leis e da administração. Devia ele saber que, mesmo na ditadura militar, quem governou o País foi o Exército e não um líder. Não houve no Brasil um Augusto Pinochet, mas presidentes com mandato.
Nossos generais pensavam na ditadura romana, como um regime de crise e não em uma tirania. É no exemplo de Lúcio Quíncio Cincinato que se miravam. Cincinato, não é demais lembrar, foi buscado pelo Senado para exercer o poder em Roma quando um exército inimigo ameaçava a República. O poder não estava em uma pessoa, mas no papel, na lei, na tradição. Para Bolsonaro ter o seu Exército, seria necessário subverter a lógica de poder da própria corporação, o que limita esse tipo de projeto golpista.
Desde os anos 1930 os militares gostam de pensar que fazem a política do Exército e não política no Exército. Quando pensa em fazer do quartel uma propriedade privada, Bolsonaro se bate contra um dos marcos referenciais nos quais a cadeia de comando trabalha há décadas. O poder pessoal de um Mito é muito diferente do poder exercido segundo o pensamento conservador que prevalece no Exército. Afrontar essa estrutura é que levou Santos Cruz a chamar a ação de Bolsonaro de “tiro no pé”. E fez Rêgo Barros concluir: “Buscar adentrar as cantinas dos quartéis com a política partidária é caminho impensado para as Forças Armadas. Elas já estão vacinadas contra esse vírus.”
Pior ainda. A identificação com o Centrão, o enterro da Lava Jato e as manobras para salvar o filho Flávio da Justiça e dos questionamentos sobre os R$ 6 milhões pagos em uma mansão em Brasília fizeram-no ouvir do general Paulo Chagas: “Bolsonaro exonerou os três comandantes das Forças Armadas porque eles não apoiaram a sua intenção autoritária de usar a força das Forças para, ao lado do centrão/ladrão, impor-se ao Congresso.” Com a política de volta entre os militares, a questão seria saber quem a pode fazer e em nome de quem. Por isso tudo, ao término da crise, o Alto Comando do Exército cantava vitória e publicava a foto de Villas Bôas e Pujol com o novo comandante, o general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira.
Para os generais, a corporação saiu do imbróglio em que se meteu com Bolsonaro como “grande vencedora” do episódio que levou à demissão de Leal Pujol. Primeiro porque o pitoresco Bolsonaro escolheu o sucessor de Pujol dentro da lista de antiguidade que trazia os generais José Luiz Freitas, Marcos Antonio Amaro dos Santos e Paulo Sérgio. Depois, porque todo o ônus da troca recaiu sobre Bolsonaro, expondo seu desejo de nomear três Pazuellos para cada uma das Forças. Prevaleceu a ideia de continuidade, de que seja quem for o comandante, Bolsonaro não poderá contar com o Exército para se tornar ditador. E, se tentar, é mais fácil ele acabar deposto do que um cabo e um soldado arriscarem o pescoço por um mito. Os generais podem agora sonhar em 2022 com a eleição de um governo do qual participem sem o inconveniente de lidar com o pitoresco capitão.