É temerário que eles substituam os políticos, ainda que os políticos assim se substituam
A grande renovação do Congresso nas eleições de 2018 reforçou um modo peculiar de representação política, em que alguns políticos fazem enquetes nas redes sociais para definir seus votos. A ideia parece ser a de dar voz ao cidadão (especificamente ao cidadão que acompanha o político nas redes sociais) no momento da tomada de decisão política. Ou tornar mais direta a democracia representativa, que é indireta, já que nela elegemos representantes que tomam decisões políticas em nosso lugar.
Essa iniciativa suscita a pergunta: se fosse possível a todo cidadão “transmitir seu voto a um cérebro eletrônico sem sair de casa e apenas apertando um botão” (Bobbio), estaríamos dispostos a assumir, no lugar dos políticos, a responsabilidade de decidir sobre questões importantes para o País? Seria bem-vinda essa onipresença da política em nossa vida?
Já há alguns anos a política assumiu um lugar central na sociedade brasileira, tornando-se seu elemento marcante até na forma como nós mesmos enxergamos a nossa sociedade. Daí que, à hipotética pergunta acima, talvez muitos respondam que aceitam assumir, no lugar dos políticos, a decisão sobre o maior número possível de questões importantes do País. Argumentariam, por exemplo, que ninguém melhor do que nós mesmos para definir assuntos que nos dizem respeito: o foco da democracia, afinal, é o autogoverno. Ainda mais diante dos representantes políticos que temos.
Essa seria uma resposta respeitável para um problema real. Mas não nos parece ser essa a melhor resposta. Ou seja, não nos parece que uma hipotética democracia “total” ou mesmo uma democracia das lives e dos cliques seja um remédio para a nossa democracia representativa.
O fato inegável de que a prática política brasileira frequentemente não se orienta pelo interesse da sociedade não será reparado pela simples retirada do poder de decisão das mãos de pessoas incumbidas da identificação, discussão e maior acomodação possível dos interesses nacionais e sua atribuição a todas as pessoas, que não precisam ter outro interesse senão o próprio.
É verdade que os políticos e seus partidos têm sido incapazes, até por desinteresse, de realizar essa identificação, o direcionamento, a conciliação de demandas sociais. Mas entender que a solução para isso está na simples agregação das preferências do maior número possível de pessoas é ignorar que democracia sem paciência, diálogo, compromisso, baseada só na contagem de votos, em “quem ganhou” e “quem perdeu”, é falsa democracia.
Nela é preciso parlamentar, ou seja, “conversar em busca de um acordo” (Houaiss); um acordo que a política meramente aritmética, de pulsão e imposição, não poderá atingir. E assim nossas divisões político-ideológicas – que já contaminam outras esferas da vida social – se perpetuarão, em prejuízo da nossa comunidade.
É temerário, portanto, substituir políticos por cliques, ainda que os próprios políticos assim se substituam, como no caso das enquetes que definem votos. É preciso recordar que o político não é mero porta-voz de seus eleitores; a relação entre eles é de confiança, de modo que o representante político age, sim, em nome dos representados, mas, ao fazê-lo, deve tutelar não só os interesses dos que o elegeram ou de algum grupo, mas os de toda a sociedade.
Daí a verdadeira “gororoba representativa” encenada nas enquetes: de um lado, o político orienta/vincula seu voto ao parecer da maioria de seus seguidores virtuais, talvez vendo aí a expressão de uma opinião pública, que, porém, é a simples soma de cliques mais ou menos informados/refletidos de sujeitos (e robôs?) privados. De outro, é o próprio político que decide quais questões serão tratadas dessa maneira.
A crítica desse estado de coisas não significa adesão a “tudo o que está aí” nem oposição ao envolvimento direto da população em assuntos de interesse público. O que emerge do que está acima é a necessidade de repensar os partidos 1) em sua organização, para que não continuem sendo o playground de suas inamovíveis lideranças nem partidos de um homem só; 2) em seus perfis e ideias para o País, o que dificilmente justificará as mais de 20 agremiações representadas no Congresso; 3) em seu distanciamento dos filiados, proporcional à sua proximidade com profissionais de marketing; 4) em sua seleção de quadros, para que propostas como a de candidaturas avulsas sejam desnecessárias.
Certamente, essas indicações não se farão presentes sem a persistente intervenção dos eleitores, da militância partidária e das instituições, nem serão o remédio para todos os males da nossa democracia representativa, mas constituem, a nosso ver, um projeto mais promissor que o da democracia “total” ou dos cliques. A atitude do bom democrata, disse Bobbio, “é a de não se iludir com o melhor e a de não se resignar com o pior”.
* DOUTOR EM DIREITO PELA USP E PELA UNIVERSITÀ DEGLI STUDI DI TORINO (ITÁLIA), INTEGRANTE DO INSTITUTO NORBERTO BOBBIO, É PROFESSOR DA FACAMP