O senador Renan Calheiros abriu o espetáculo e foi ao ataque logo na primeira sessão da CPI da Covid:
— Não foi acaso ou flagelo divino que nos trouxe a este quadro. Há responsáveis, evidentemente. Há culpados por ação, omissão, desídia ou incompetência. E eles, em se comprovando, serão responsabilizados.
Citando os ditadores sanguinários Slobodan Milosevic e Augusto Pinochet, Renan disse que “os crimes contra a Humanidade não prescrevem jamais”. Não chegou a chamar Jair Bolsonaro de genocida, mas lançou mão de um “vidas negras importam” inédito em sua retórica. Com os holofotes do picadeiro voltados para ele, falou com a segurança de quem tem a maioria na comissão — apoio de 7 dos 11 titulares — e colheu os esperados louros, especialmente na opinião pública.
Mas quem espera que esteja aberto o caminho para o impeachment deve ter em mente que o desempenho de Renan obedece a uma agenda bem clara, ao mesmo tempo pessoal e política. Do lado pessoal, vai saborear a revanche contra Bolsonaro, Davi Alcolumbre e Rodrigo Pacheco, que há dois anos o tiraram do comando do Senado.
Na agenda política, é fazer sangrar o governo sem necessariamente chegar ao impeachment — seguindo o roteiro que interessa ao seu maior aliado, o ex-presidente Lula. Para o petista, o melhor dos mundos é polarizar a eleição de 2022 com um Bolsonaro enfraquecido, mas não com uma candidatura de centro-direita — que tende a ganhar espaço se Bolsonaro estiver fora do páreo.
Não parece, hoje, uma missão difícil. A CPI começa prometendo um palco iluminado a oposicionistas e independentes. Além de terem formado um bloco coeso, enfrentam um governo desarticulado politicamente e consumido por disputas internas. Um exemplo: o vazamento, nesta semana, da relação de 23 pontos fracos do governo na CPI elaborada na Casa Civil, vista como espécie de roteiro para o trabalho da oposição. No Palácio do Planalto, dá-se como certo que foi obra de fogo amigo, disparado por rivais do ministro da Casa Civil, o general Luiz Eduardo Ramos — o mesmo que foi pilhado dizendo ter tomado a vacina contra a Covid-19 escondido, por orientação da chefia.
O périplo que Lula fará em Brasília, na semana que vem, tem tudo para exacerbar o sentimento que anda rondando os profissionais da política: que Bolsonaro chegará nanico em 2022, sem apoio popular, sem um partido forte e sem conseguir usar a máquina no modo tradicional para se reeleger. Não porque não queira, mas por não ter competência para fazê-lo. “Bolsonaro hoje não consegue tapar nem um buraco de rua”, me disse outro dia um ativo integrante do Centrão.
Claro que esse tipo de previsão, a 18 meses das eleições, não quer dizer grande coisa. Mas serve para mostrar que a emergência de Lula como candidato com perspectiva real de poder mexe com os instintos mais primitivos do Centrão. O primeiro sinal é visível em Ciro Nogueira (PP-PI). Ex-lulista convertido ao bolsonarismo, nem mesmo ele se apresenta na CPI com o empenho e a verve necessários para defender o governo.
Mas Bolsonaro não está morto. Ao repisado axioma de que nunca se sabe como as CPIs terminam, agregue-se a constatação de que CPIs são maratonas, e não corridas de 100 metros rasos. Se durar todo o prazo permitido, a atual só termina em outubro deste ano. Até lá, muita coisa pode acontecer.
Bolsonaro pode ser politicamente inábil aos olhos dos decanos da CPI, mas não chegou aonde chegou na base da inocência. Ele tem consciência de que a faixa presidencial protege até mesmo quem não sabe usá-la bem. Não dispõe de muita folga orçamentária e pode não ter competência para “tapar buraco de rua”, mas cederá o que for necessário para evitar o impeachment. E, se não tem maioria na CPI, ainda comanda a Polícia Federal e a Procuradoria-Geral da República, que neste momento têm, espalhadas pelo país, dezenas de investigações contra prefeitos e governadores sobre desvios de recursos do combate à Covid-19.
Na segunda-feira, véspera da instalação da CPI, a PGR denunciou o governador do Amazonas, Wilson Lima, seu vice e outros 16 componentes de sua gestão por formação de organização criminosa e desvio de dinheiro público durante a pandemia. Se as operações se multiplicarem nos próximos meses, produzindo prisões em série, denúncias e delações premiadas, Bolsonaro terá uma ferramenta de pressão sobre a CPI e uma narrativa nas eleições. Para alguém acostumado a botar fogo no circo, pode ser o suficiente para chegar vivo a 2022.
Fonte:
O Globo