Sob FHC e sob Lula, alguns conselhos marcaram a história
Exatos 15 dias separam a data de criação do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, em 16 de março de 1964, do golpe militar. Nem mesmo sob a ditadura houve a ousadia de admitir abertamente a extinção do colegiado. Relatos da época comprovam, obviamente, manobras do governo militar para esvaziar e controlar politicamente o conselho que defendia os direitos humanos. Ainda que desidratado, o CDDPH sobreviveu à ditadura. Hoje, após uma luta de quase duas décadas no Congresso, foi transformado, pela Lei 12.986, em Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), em 2014, com definições claras sobre a paridade dos membros, mandatos, eleição e, sobretudo, suas atribuições.
Significa dizer que nem com caneta Bic ou Montblanc, caso se queira dar mais glamour à medida, o CNPH poderá ser extinto por decreto presidencial, ainda que Jair Bolsonaro já tenha associado direitos humanos a “politicagem”, “bandidagem” e “esterco da vagabundagem”. O ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, afeito a bravatas, antecipou a pedido do chefe que “todos os conselhos que existem nos últimos anos” serão revisados pelo atual governo. São centenas de colegiados, alegou o ministro, “todos eles com um volume muito grande de pessoas, o que traz custos para a administração pública”.
O pente-fino dos conselhos está em curso e pouco se sabe sobre o assunto, definido a portas fechadas no Palácio do Planalto. É difícil crer, pelas circunstâncias, que o governo vai analisar em profundidade o mérito das atividades por muitos destes colegiados que expõem as disparidades de um Brasil que está a léguas de distância da burocracia do Planalto Central, parafraseando o presidente, que passou a campanha prometendo “Mais Brasil e menos Brasília”.
A canetada do primeiro dia de governo, a Medida Provisória 870, extinguiu o Consea, Conselho Nacional de Segurança Alimentar. A atuação do colegiado foi fundamental para que o Brasil passasse a ter uma política nacional de segurança alimentar e nutricional. Políticas públicas implementadas com ajuda do Consea permitiram, por exemplo, que a merenda escolar tivesse 30% de produtos de agricultura familiar. Inclusões produtivas de pequenas comunidades foram impulsionadas.
O Brasil deixou o Mapa da Fome em 2014, de acordo com relatório global da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO): de 1990 a 2014, 84,7% dos brasileiros deixaram a situação de subalimentação. O Consea também travou embates sérios sobre o uso abusivo de agrotóxicos. São exemplos de medidas práticas, com resultados favoráveis ao Brasil. Talvez nem tanto a Brasília. Mas essa história foi apagada pela Bic de Bolsonaro.
Para evitar que a carga de uma caneta que parece bastante cheia possa produzir danos irreversíveis, a Mesa Diretora do Conselho Nacional de Direitos Humanos vai estar com a ministra Damares Alves amanhã, em Brasília. Como o CNDH tem paridade entre representantes da sociedade civil e do governo federal, estarão na audiência também representantes da Defensoria Pública da União, do Ministério Público e da Secretaria Nacional da Cidadania, ligada à pasta da ministra.
Damares se mostra disposta a receber entidades da sociedade civil, mas quem passou por seu gabinete nas primeiras semanas de governo reparou mais na vestimenta azul que a ministra insiste em usar do que em seu discurso obsessivo sobre a “família brasileira”. Tem também preocupação peculiar em enfatizar que sua pasta não desmontou a estrutura de proteção a direitos da população Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (LGBTI). Pouco se escuta, em seu gabinete, sobre população ribeirinha, população em situação de rua, população carcerária, liberdade de expressão, povos indígenas e quilombolas, conflitos fundiários, racismo, trabalho em condições análogas à escravidão. Ou seja, setores em que os direitos humanos são flagrante e constantemente violados, o que reflete muito do que é o Brasil.
O presidente do CNDH, Leonardo Pinho, vai enfatizar à ministra a necessidade de o conselho ser preservado, agir com autonomia e ter o reconhecimento do governo federal, para que trabalhem em parceria e em favor do Brasil. A lei de 2014 previu dotação orçamentária ao colegiado, mas a liberação da verba depende, mais uma vez, da caneta – neste caso a da ministra Damares.
Na vida real, fora dos gabinetes de Brasília, o Conselho Nacional de Direitos Humanos mandou missões, em 2017, a áreas indígenas com alto grau de violência. Em 2018, conselheiros foram ao Vale do Ribeira, em que um processo de titulação de terra quilombola agravava ainda mais os conflitos agrários locais. Em Anapu (Pará), o CNDH interveio em disputas envolvendo extração ilegal de madeira. Em 2018, a atuação do colegiado foi fundamental para assegurar a aprovação da Lei 13.769, que alterou o Código de Processo Penal para permitir que mulheres gestantes ou mães de crianças de até 12 anos ou com deficiência tivessem o direito de substituir a prisão preventiva por prisão domiciliar. A lei surgiu depois que uma missão do CNDH visitou mulheres detidas em presídio do Distrito Federal e constatou situações de desrespeito a direitos humanos a mulheres gestantes ou lactantes.
O presidente da CNDH está disposto a ter um “papo reto” com a ministra Damares, como gosta o governo. Os conselheiros acham que é preciso esgotar todas as possibilidades de diálogo e aguardar ações concretas do governo federal. Sob Lula e FHC, o Consea e o Conselho Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae), respectivamente, marcaram a história. Em 2014 o Brasil deixou o Mapa da Fome, mas brasileiros voltaram a enfrentar o desnutrição no triênio 2015-2017, como constatou a ONU recentemente. Em 1995, FHC reconheceu a existência de trabalho escravo no Brasil e criou o Conatrae para combater esse drama. Bolsonaro terá que definir qual registro histórico quer deixar sobre sua relação com esses conselhos.