Maílson da Nóbrega: Boas novas e riscos do ‘orçamento de guerra’

Passada a crise, cabe realizar uma criteriosa reflexão sobre como devem tramitar as PEC.
Foto: Tânia Rego/Agência Brasil
Foto: Tânia Rego/Agência Brasil

Passada a crise, cabe realizar uma criteriosa reflexão sobre como devem tramitar as PEC

O “orçamento de guerra” é uma iniciativa positiva e sem paralelo institucional. A emenda constitucional permite suspender, durante a crise da covid-19, as restrições que nos protegem contra aventuras fiscais e creditícias.

Em seus pontos altos, destacam-se a criação do comitê gestor, a autorização para o Banco Central adquirir títulos do Tesouro e papéis privados no mercado de capitais e o caráter temporário das medidas. Não há registro de evento legislativo de tal envergadura. Tradicionalmente, cabiam ao Poder Executivo as medidas na área de finanças públicas. No regime militar, essa era uma das hipóteses em que se podiam baixar decretos-leis.

Sua aprovação reflete três novidades no Congresso: 1) a percepção do vácuo de poder derivado do déficit de liderança do presidente da República; 2) a coordenação das preferências parlamentares pelos presidentes das duas Casas do Congresso, o que já fora feito na reforma da Previdência, dada a renúncia do presidente Jair Bolsonaro a exercer o papel de coordenador do jogo político do presidencialismo de coalizão; e 3) a qualidade técnica dos quadros do Congresso, compreendendo o corpo competente dos consultores da Câmara dos Deputados e do Senado, bem como da recente e promissora Instituição Fiscal Independente do Senado.

O “orçamento de guerra” foi aprovado rapidamente porque, além dessas novidades, fez-se vista grossa para as regras regimentais sobre tramitação de emendas constitucionais. A não observância dos dias de interstício entre votações nas comissões e no plenário assegurou o célere andamento da emenda e a aprovação do projeto a toque de caixa, em comissões e em duas votações no plenário. Claro, essa inédita velocidade foi justificada diante de uma situação excepcional.

Em todo o mundo, propostas de emenda constitucional obedecem a um rito legislativo mais complexo do que o de leis ordinárias. Afinal, cuida-se de alterar o estatuto fundamental do país. É preciso que se permita discussão mais demorada. A votação em dois turnos assegura um espaço para reflexão sobre o que passou no primeiro. Exige-se número mínimo de sessões e um intervalo de tempo entre as votações. Nos Estados Unidos, emendas constitucionais precisam ser ratificadas por três quartos das assembleias legislativas estaduais. Levam até quatro anos para sua ratificação. Num exagero, a Emenda 23, aprovada em setembro de 1789, foi ratificada em maio de 1992.

Se foi justificado o rito sumário da emenda do “orçamento de guerra”, é preciso evitar que ele se torne permanente. Na verdade, há que rever o regimento para assegurar que propostas de emendas constitucionais tenham mais tempo para debate, reflexão e aprovação. Elas não estão sujeitas a veto. Emendas constitucionais são promulgadas pelo presidente do Congresso Nacional, que é o presidente do Senado. Parlamentares já se deram conta de que esse é o caminho para obter a aprovação de medidas populistas, pois conseguem se livrar do veto presidencial, na verdade, um apelo à ponderação É preciso cuidado com o uso abusivo de emendas constitucionais.

A característica detalhista da Constituição de 1988 é um convite à sua permanente alteração. Dispositivos que poderiam constar de legislação ordinária e até de decretos presidenciais viraram mandamento constitucional. O texto cuida de aspectos como o lugar onde deve morar o juiz, cinco tipos de polícia, muitos direitos e poucos deveres. O Brasil é provavelmente o único país onde reformas como as da Previdência ou do Sistema Tributário Nacional precisam de mudanças na Constituição. Diferentemente disso, o presidente americano, Donald Trump, conseguiu empreender uma reforma tributária sem recorrer a emenda constitucional. O ex-presidente Maurício Macri mudou por lei o regime previdenciário argentino.

A Constituição tem 250 artigos, além dos 114 que compõem o Ato das Disposições Transitórias. Daí por que, em apenas pouco mais de 31 anos, ela já foi emendada 105 vezes antes da emenda do “orçamento de guerra”. A Constituição americana tem sete artigos e foi emendada apenas 27 vezes em quase 223 anos. Na prática, foram 18 emendas, pois o Bill of Rights (Carta de Direitos) poderia ser considerado uma única emenda, e não as dez constantes do texto, que foi aprovado num único ato.

Repetindo, nossa Carta Magna é um convite a mudanças. Várias propostas de emenda constitucional (PEC) que circulam no Congresso são verdadeiras pautas-bomba, capazes de infligir sérios danos às finanças públicas e, assim, à capacidade do País de crescer e gerar renda e empregos. É o caso da PEC que equipara os salários de bombeiros de todo o País aos vencimentos dos bombeiros do Distrito Federal, uma temeridade.

Passada a crise, cabe realizar uma criteriosa reflexão sobre como devem tramitar as PECs. A interpretação da norma permitiu a aprovação célere do “orçamento de guerra”, mas pode ter sido o germe que tornará possível tomar decisões prejudiciais ao futuro do País.

SÓCIO DA TENDÊNCIAS CONSULTORIA, FOI MINISTRO DA FAZENDA

Privacy Preference Center