Arthur de Souza*, Correio Braziliense
Juíza substituta do Tribunal de Justiça do DF e Territórios (TJDFT), Paula Ramalho foi a entrevistada de ontem do programa CB.Poder, parceria entre Correio e TV Brasília. À jornalista Ana Maria Campos, ela destacou o aumento nos casos de racismo e de injúria racial no Distrito Federal, além de comentar sobre uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que acabou com a prescrição para o segundo tipo de crime.
Questionada sobre sobre a atitude agressiva de um policial militar com um negro, durante uma abordagem ocorrida neste fim de semana, em Planaltina, a magistrada disse que existe “uma ideologia disseminada e muito enraizada, não só no ambiente policial, mas na sociedade como um todo, que construiu a imagem do ‘negro perigoso’.”
A gente publicou uma reportagem na semana passada mostrando que o número de casos de injúria racial e de racismo tem crescido no Distrito Federal. A senhora consegue constatar isso no dia a dia do seu trabalho?
Sim. Na verdade, tenho atuação predominante na área criminal e, ao longo desses oito anos em que desempenho a função de juíza no TJDFT, a gente tem se deparado com processos que chegam até nós envolvendo denúncias, seja relativas ao crime de injúria racial, seja relativo ao crime de racismo. Nos últimos tempos, a reportagem demonstra bem que houve um aumento do número de casos. E isso não é só no DF. Embora os números daqui causem um certo espanto, me parece ser um cenário nacional. Recentemente, foi publicado no Anuário de Segurança Pública, dados de 2021 e 2022 — consolidados em agosto — indicando que, no Brasil como um todo, houve um aumento expressivo dos casos de racismo.
Primeiro explique, por favor, qual é a diferença entre a injúria racial e o crime de racismo?
A injúria racial é um crime em que o que é atingido é a honra de alguém, é aquela apreciação subjetiva que a pessoa tem a respeito de si mesma perante a coletividade. Então, na injúria racial existe uma ofensa a uma pessoa determinada ou a um grupo de pessoas e, nessa ofensa, são utilizados termos e/ou palavras que digam respeito a sua cor, a sua raça, a sua etnia. Enquanto que os crimes de racismo têm previsão em uma lei específica, que é a Lei nº 7.716/1989. Essa lei traz vários tipos de crime de racismo que envolvem, na maioria das vezes, negar ou dificultar acesso a determinado bem, serviço ou produto. Por exemplo, há uma previsão de que se você negar matrícula ou dificultar a matrícula de alguém em estabelecimento de ensino por conta de cor, raça, etnia ou procedência nacional, isso configura um crime de racismo. A gente tem um passado de praticamente mais de três séculos de comércio escravagista. O Brasil foi o país que mais recebeu pessoas escravizadas vindas do continente africano e, mesmo após a abolição, a gente teve uma abolição formal, mas, do ponto de vista material, não foram dadas às pessoas negras as condições para que elas tivessem sua cidadania e sua dignidade garantidas pelo estado brasileiro.
A decisão do STF (sobre os crimes de injúria racial) foi importante. Explica para gente como foi isso?
Foi uma decisão dada em um habeas corpus, que é um processo que busca proteger a liberdade de locomoção de uma pessoa, e o ministro relator foi o Edson Fachin. É um caso que veio do DF, inclusive. A pessoa estava sendo acusada de injúria racial e o que ela dizia, em sua defesa, era que tinha passado o tempo do estado apurar e punir essa conduta ou, em termos jurídicos, houve a prescrição. O Ministério Público falou que não houve prescrição, porque a injúria racial, assim como o racismo, deve ser tida por imprescritível, já que a nossa constituição repudia o racismo e ela mandou que a lei considerasse o racismo crime inafiançável e imprescritível. Essa tese do Ministério Público acabou sendo acolhida pelo ministro Fachin quando ele diz que, tanto os crimes de racismo previstos na lei especial quanto a injúria racial prevista no código penal, são espécies de um mesmo fenômeno que é repudiado pela constituição, que é o fenômeno do racismo. Então, existe uma vinculação muito próxima entre essas duas figuras e, para que o racismo seja extirpado, ambas as figuras devem ser tratadas com rigor, e foi esse o entendimento que acabou acolhido por maioria no Supremo Tribunal Federal.
Essa decisão tem efeito de repercussão geral?
Ela foi dada em um processo que a gente chama de processo subjetivo ou individual, que é o habeas corpus. Mas, como foi uma decisão do plenário que, inclusive, faz referências a outros processos que o STF decidiu em sede de controle concentrado, ela tem uma força persuasiva muito grande, embora ainda não conte com esse efeito vinculativo.
A senhora considera essa decisão um avanço, em termos da legislação?
Com certeza. Aqui no DF, a gente tem, de certa forma, uma vantagem, porque o nosso tribunal é reconhecido pela sua celeridade. Dificilmente, casos de injúria racial, ainda que se considere prescritível, dificilmente prescrevem, porque a atuação da Justiça aqui é relativamente célere. Mas, infelizmente, essa não é a realidade do país como um todo. Assim, considerar a injúria racial prescritível, significa dizer que muitos casos deixarão de ser apurados e punidos porque passou muito tempo e a justiça não agiu de modo célere e, com essa decisão, isso não acontece mais, a qualquer tempo, essa prática poderá ser punida.
A senhora acha que algumas pessoas cometem esse tipo de crime por acreditarem que elas vão ficar impunes, que isso não acarreta uma pena ou uma punição?
Acredito que a incerteza ou a garantia da impunidade, sem dúvida alguma, atua como fator que serve como estímulo ou, pelo menos, deixa de inibir as pessoas que tenham esse tipo de conduta ou esse tipo de pensamento. Nos tempos atuais, temos visto uma compreensão muito “elástica” da liberdade de expressão, como se fosse um direito absoluto. Então, sem dúvida alguma, a falta de punição em relação a esse tipo de situação, pode servir como estímulo para que essa prática se perpetue, e que as pessoas se vejam no mínimo não desestimuladas a expressar esse tipo de pensamento.
Qual é a pena para esses tipos de crimes?
Para a injúria racial, que tem previsão no código penal, a pena mínima é de um ano, e a máxima é de três anos de reclusão, que é um tipo de pena privativa de liberdade. Já na 7.716/1989, que tipifica os crimes de discriminação racial, a gente tem pena variáveis, porque são cerca de 17 figuras criminais. Aí tem penas que variam de um a três anos, assim como a injúria racial, e tem umas que vão de dois a cinco anos, que é a maior das penas previstas nessa lei específica. Mas, pela quantidade de penas, a verdade é que, muito dificilmente, alguém iria cumprir essa pena presa. Muitas vezes, quando a pena não supera os quatro anos, pela nossa lei, o autor tem o direito de cumprir penas alternativas. Então, quando há a condenação, muitas vezes a pena é: prestar serviços para a comunidade, fazer o pagamento de prestação pecuniária para algum tipo de entidade que a justiça indique ou assinale. Então, a rigor, muito dificilmente a prisão vai ser a resposta do estado, que vai se dar por meio de outras penas, na maioria das vezes.
Por que a sociedade não avança no sentido de reduzir esse tipo de crime?
Essa é uma pergunta muito complexa e a resposta para ela, evidentemente, não é das mais simples. Vários pensadores intelectuais destacam que o racismo é um fenômeno estrutural na sociedade brasileira, que não se revela apenas nessas condutas individuais, em que alguém ofende a outra pessoa ou alguém, por exemplo, num restaurante, deixa de atender ou atende mal um cliente por conta de sua cor. O racismo, na verdade, é uma ideologia que está tão arraigada na sociedade brasileira, que faz com que as pessoas vinculem características da população negra a coisas negativas, não desejáveis ou não valorosas. Desarticular todo esse sistema e estrutura racista, em que se funda o estado brasileiro, é algo que demanda realmente muito tempo. Se a gente parar para ver, voltando rapidamente para a questão histórica, faz pouco tempo que o estado brasileiro começou a se movimentar para poder desarticular essa estrutura. A gente tem, por exemplo, uma lei de política afirmativa de cotas, tanto na parte educacional quanto no serviço público, que veio a completar 10 anos recentemente. A própria lei que criminaliza essas condutas de descriminação racial é de 1989, ou seja, completou pouco mais de 30 anos anos de vigência. A injúria racial mesmo, foi incluída no código penal em 1997, pouco mais de 20 anos. Então, se a gente pega três séculos em que o discurso racista foi incutido na sociedade brasileira e pega o período de tempo em que isso vem sendo desmontado ou desarticulado, acho que isso nos ajuda a entender o porquê de não ter havido ainda tantos avanços em relação a isso. E, de fato, a impressão que a gente tem no momento é que realmente há retrocesso, e acho que esse retrocesso está um pouco ligado ao tensionamento que há no tecido social brasileiro. A gente, nos últimos tempos, tem visto a olhos nus um crescimento da intolerância. E aí, os grupos mais vulneráveis são justamente, negros, mulheres, população LGBTQIA .
Como é que a senhora avalia essa política de cotas e de ações afirmativas para colocar e dar oportunidade para as pessoas de evoluírem, estudarem e crescerem?
Sou nordestina, minha família é de Alagoas. Quando tomei posse na magistratura, meus pais vieram e, à época, na cerimônia em si a gente tinha um desembargador negro. Aí eu lembro que um outro dia, conversando com meu pai, ele falando sobre esse tema de polícia de cotas, ele falou sobre esse desembargador e disse: “tá vendo? quem quer e se esforça, consegue!”. Então, existe dentro da população, de um modo geral, esse senso comum de que com o esforço e com dedicação, as pessoas conseguiriam romper esses obstáculos causados por uma estrutura racista. Só que o ponto é que não é justo que pessoas por conta de sua cor, da sua raça, de sua procedência nacional e de sua etnia, tenham que enfrentar tantos obstáculos partindo de condições desiguais se comparadas às pessoas de pele branca, por exemplo. Assim, vejo a política de cotas como política de compensação, o estado brasileiro está compensando todos os danos que causou à população negra, historicamente falando, e também está buscando criar condições de igualdade de partida. Por mais que a gente encontre figuras que furam esse bloqueio, digamos assim, são poucas ainda.
A senhora acha que esse momento de embate eleitoral, muito pela polarização política, também pode incentivar esse atrito de racismo e descriminação?
Sim e, nesse caso, não se trata de uma mera opinião. A gente tem dados que confirmam aumento expressivo dos chamados crimes de ódio, que envolvem racismo, xenofobia e misoginia, nesse período eleitoral. Existe uma associação civil que recebe denúncias, digamos assim, de fatos ocorridos no ambiente virtual. E essa associação, em matéria divulgada até no site do Senado, indicou que neste ano de 2022 houve um aumento de cerca de 65% nas denúncias de situações, no ambiente virtual, envolvendo racismo, intolerância, preconceito, racismo contra as religiões de matriz africana e ofensas dirigidas às mulheres. Tudo isso cresceu bastante, até porque, se olharmos o cenário eleitoral como foi delineado, a gente viu que um determinado candidato — o que se sagrou vencedor — tinha um voto majoritariamente de pessoas negras e de mulheres. Isso acabou fazendo com que, no embate eleitoral, muitas vezes houvesse ofensas pautadas nesses marcadores: raça, gênero e procedência nacional, como no caso dos nordestinos. E tudo isso realmente ficou muito intensificado, dada a violência verbal que marcou todo esse período eleitoral, infelizmente.
A gente teve um caso nesse fim de semana (no DF), de um policial militar que foi agressivo com uma pessoa negra durante uma abordagem. Como se pune um caso como esse?
Existe uma ideologia disseminada e muito enraizada, não só no ambiente policial, mas na sociedade como um todo, que construiu a imagem do negro perigoso. A pessoa suspeita e que recebe as abordagens mais truculentas da polícia, em geral, tem cor, tem um perfil, e esse perfil é justamente da população negra, em especial do homem negro, que é muito vitimado por essas ações e abordagens ilegais, da maneira como são feitas, pelo menos, por parte da polícia. É claro que a gente não pode dizer que isso é um problema desse policial, em específico. Na verdade, o problema é estrutural e o combate a ele demanda atuação enérgica, não só dos órgãos de controle da polícia, como o Ministério Público — que tem por função também controlar e exercer a fiscalização da atividade policial —, como também um trabalho interno de educação antirracista dentro das próprias polícias, fazendo com que esses policiais, desde o seu ingresso na polícia, compreendam que existem protocolos a serem seguidos durante a abordagem, e que o motivo da abordagem jamais pode ser simplesmente essa fundada suspeita baseada na cor, no jeito de vestir, no jeito de andar e no local onde a pessoa está, de maneira isolada.
*Matéria publicada originalmente no Correio Braziliense