Reinaldo José Lopes | Folha UOL
Não é mero exagero retórico classificar a eleição presidencial de 2022 como um momento sem precedentes da história brasileira. Segundo cientistas políticos e historiadores entrevistados pela Folha, a disputa entre Bolsonaro e Lula se caracterizou por uma série de elementos inéditos e mostrou como os últimos anos transformaram profundamente o cenário eleitoral do país.
“Não se parece com nada” do que se viu em outras eleições presidenciais democráticas no Brasil, diz Vitor Marchetti, professor do Centro de Engenharia, Modelagem e Ciências Sociais Aplicadas da UFABC (Universidade Federal do ABC).
Algumas dessas novidades podem dar a impressão de ser meros detalhes. Foi, por exemplo, a primeira vez em que dois presidentes da República democraticamente eleitos, entre eles o atual ocupante do cargo, enfrentaram-se diretamente, e a primeira vez que um presidente conquista um terceiro mandato.
De quebra, desde que reeleições presidenciais se tornaram uma possibilidade, um presidente no poder nunca tinha perdido a chance de um segundo mandato, como aconteceu com Jair Bolsonaro.
“Também é a menor diferença de votos de todos os tempos entre os candidatos no primeiro e no segundo turno, embora, nesse caso, a nossa série histórica seja muito curta”, pondera ele. Por fim, o país continuou a bater seu recorde de eleições democráticas para presidente (33 anos de 1989 a 2022, contra o intervalo bem mais curto de 1945 a 1964).
Além dessas peculiaridades estatísticas, no entanto, a eleição de 2022 mostra “os eleitores migrando para outro tipo de lógica”, diz o pesquisador da UFABC. Mas a mudança não tem a ver exatamente com a intensa polarização dos votantes.
“Já tivemos polarizações tão fortes quanto a atual antes, como a que existiu entre os varguistas [partidários de Getúlio Vargas] e os antivarguistas, ou entre os eleitores de Juscelino Kubitschek e seus adversários”, analisa Ricardo Duwe, doutorando em história pela Universidade Federal de Santa Catarina e apresentador do podcast Estação Brasil. “Polarizações são esperadas e até positivas em regimes democráticos.”
Para Duwe, entretanto, o atual pleito, assim como o de 2018, recuperou um elemento da política brasileira que tinha ficado esquecido após o desmantelamento do integralismo, principal movimento fascista brasileiro dos anos 1930.
“Só naquela época é que a extrema direita do Brasil tinha conseguido se transformar num movimento de massa, com forte participação popular e liderança carismática”, explica ele.
“Depois disso, nós sempre tivemos políticos de direita bastante carismáticos, como [o presidente da República] Jânio Quadros. Mas eles sempre tentaram restringir a participação popular de massa às eleições. O voto era visto como a única chancela necessária para eles, e fora disso não havia razão para a população participar da política. O bolsonarismo inverte essa lógica por ser um movimento de massa que, ironicamente, colocou em dúvida a legitimidade das eleições.”
Marchetti afirma que, em vez de uma polarização partidária, como a que opôs PT e PSDB ao longo dos anos 1990 e das primeiras décadas do século 21 nas eleições presidenciais, o correto agora é falar de uma polarização afetiva, muito distante da lógica dos partidos.
Lula e Bolsonaro em campanha no 2º turno
“Nosso presidencialismo favorece as disputas concentradas em personalidades. Só se mantém competitivo quem consegue fazer isso, criando uma linha direta com o eleitor”, diz ele.
“É a primeira vez que tivemos os dois principais candidatos com forte conexão popular. Quando isso aconteceu antes? Jamais. Antes de 1989, os candidatos eram sempre da elite civil ou militar”, analisa o jornalista Rodrigo Vizeu, autor do livro “Os Presidentes” e criador do podcast Presidente da Semana, publicado pela Folha.
“Só agora, aos 77 anos, Lula enfrentou e derrotou um candidato que também tem estilo popular.”
Para Vizeu, o fato tem tudo para ser “desanimador para terceiras vias de terno e gravata e discurso manso, acostumadas a ar condicionado e cadeiras acolchoadas”.
“A última vez que o Brasil elegeu um presidente com perfil de elite foi em 1998, com FHC. Há um quarto de século. Então, parecem-me desafiadoras as perspectivas de membros da elite que sonhem em vestir em si mesmos a faixa presidencial.”
Outro elemento que distinguiu a eleição presidencial de 2022, de acordo com Marchetti, é a mobilização do interior do país em favor de ambas as candidaturas, em contraposição às capitais.
“A mobilização de massa era mais comum nas grandes cidades, por conta da complexidade das questões nesses centros. Agora, a gente vê a mobilização do interior do Nordeste e do Centro-Oeste, por exemplo, onde Lula e Bolsonaro, respectivamente, chegaram a obter 90% ou mais dos votos.”
Para a cientista política Lara Mesquita, pesquisadora da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas, ainda não está claro se a atual polarização terá consequências de longo prazo para o eleitorado.
“Vimos duas grandes rejeições organizando os eleitores, mais do que convergências. Analisando respostas em pesquisas de opinião sobre o posicionamento dos eleitores que apoiaram os dois candidatos, notamos que eles não foram drasticamente diferentes”, argumenta.
“Claro que as vitórias de candidatos muito alinhados com Bolsonaro nas eleições legislativas nos fornecem indícios de um eleitor de direita mais conservador, mas isso não corresponde à maior parcela da sociedade, ou algo próximo a 50% do eleitorado.”
Segundo a pesquisadora, é possível defender que os resultados deste ano foram cruciais para a manutenção da democracia inaugurada com a Constituição de 1988, e também para políticas públicas como a proteção ambiental, que corriam riscos caso Bolsonaro fosse reeleito.
Matéria publicada originalmente na Folha UOL