Com os êxitos eleitorais das forças conservadoras no Senado e na Câmara Federal experimentamos um momento inédito na política brasileira de captura dos instrumentos do poder por parte de elites parasitárias do Estado, agrupadas no chamado Centrão, assim conhecido na linguagem dos jornais, melhor designado pelos cientistas sociais como o reduto do nosso atraso político-social. Tais elites nos acompanham ao longo do nosso processo de modernização, de Vargas a Lula, sempre como coadjuvantes, fornecendo bases de sustentação em seus rincões aos diferentes surtos de modernização que se sucederam na história republicana moderna no processo de imposição do capitalismo brasileiro.
Foi assim com a política de Vargas, que nos trouxe ao moderno da industrialização em aliança com o atraso – basta lembrar sua recusa em levar a legislação trabalhista ao campo –, com a de JK, com a do regime militar de1964, especialmente no desenvolvimentismo do governo Médici, que confiou sua política à Arena, partido formatado com as elites do atraso. Chegamos à modernização por meio desse conúbio, classicamente uma modernização conservadora, que nos embaraçou em nosso movimento em direção ao moderno.
O ineditismo da hora presente reside, pois, nessa abstrusa situação em que o coadjuvante chega ao proscênio na ausência de um protagonista. Para que um ator exerça protagonismo em cena é indispensável que ele seja portador de um papel ativo na condução de um enredo em que ele centralize o sentido das ações, papel que o Centrão, por natureza um conjunto amorfo de políticos sem luz própria, não tem como exercer. Bolsonaro igualmente não cabe nesse perfil, presidente acidental que chega ao governo num lance de fortuna e que tem como único projeto a conservação do poder, desconfiado como os tiranos clássicos de tudo e de todos ao seu redor.
O cenário é de desconcertante miséria política numa sociedade carente de lideranças que lhe apontem um rumo em meio às suas dolorosas aflições pela ação de uma cruel pandemia, acossada pelo desemprego e com boa parte dela às portas da miséria absoluta. As respostas a essa situação de descalabro inaudito são desalentadoras, como a do prefeito de Salvador, ACM Neto, virtual candidato ao governo do seu estado, indicando seu alinhamento a Bolsonaro, como foi a do ex-presidente da Câmara Federal, Rodrigo Maia, que por cálculos mesquinhos sentou-se em cima de dezenas petições em favor do impeachment presidencial. E chegam ao inacreditável com a recusa de Lula de compor uma ampla coalizão democrática na próxima sucessão presidencial em nome de uma candidatura do seu partido.
Não há governo e nem sequer uma oposição digna desse nome, assombrada diante da mula sem cabeça assentada em seu destino a sociedade clama por uma voz e ações que venham a seu socorro, que somente podem provir de suas entranhas, como estão vindo das comunidades populares e dos seus artistas e intelectuais, dos profissionais da saúde e das nossas maiores personalidades intelectuais, que fazem coro aos parlamentares que receberam no Congresso o presidente que aí está aos brados de facínora genocida.
Mais do que denunciar o caráter perverso do atual governo, por sua incúria em enfrentar a pandemia, os movimentos que se fazem presentes na luta contra ela têm importado em impulsos para a auto-organização da vida social, registrando-se inclusive petições de impeachment apresentadas por personalidades das atividades de saúde pública. Cabe ao campo democrático amplificar a ressonância dessas vozes traduzindo-as em um sonoro clamor público, chave acionada para nos livrar do horror a que estamos submetidos.
É verdade que temos um encontro marcado com o que aí está em 2022, se não conseguirmos antecipar essa data com um reparador impeachment. Para ele devemos nos preparar, em primeiro lugar com a apresentação de um projeto de soerguimento do país, de reanimação da sua vida econômica e cultural que devolva esperança aos brasileiros. Sobretudo com a articulação de uma frente política tão ampla quanto possível, e que encontre suporte na sociedade civil na forma que aprendemos a fazer nas lutas contra o regime militar.
As condições para tal empreendimento estão dadas e visíveis a olho nu, como no cenário internacional em que a potência dominante defenestrou o populismo reacionário de Trump, e entroniza como eixo estratégico da sua política os temas ao meio ambiente e dos direitos humanos, calcanhares de Aquiles do atual governo que logo sentirá os efeitos perturbadores dessa nova orientação. Internamente, o experimento exótico de um governo dominado pelo Centrão com a consistência das gelatinas, em que pesem as cabriolas hermenêuticas que rolam por aí, promete ser minado pela fúria dos apetites desencontrados dos seus quadros numa feroz competição que ignora quem a arbitre, tal como se testemunha no interior do DEM, satélite enrustido do Centrão.
A composição dessa frente implica em engenho e arte por parte das forças democráticas, particularmente da esquerda, artífice de importância crucial de sua elaboração, cabendo a ela tecer os fios de comunicação entre as forças convergentes no propósito maior de servir a afirmação dos seus valores e princípios. Não chegou ainda a hora da fulanização, para se usar uma expressão de Fernando Henrique, ela virá do processo de construção da frente democrática conforme sustenta Guilherme Boulos em sua resposta a uma precoce proposta de candidatura por parte do PT.
É preciso reconhecer que os recentes resultados negativos nas eleições congressuais adensaram a neblina dos mares que singramos, mas contamos com os bons conselhos do poeta que nos recomenda que, em meio ao nevoeiro, levemos o barco devagar. Devagar, mas em frente, sugerem as suas palavras. A tempestade já passou, ficaram para trás os delírios de um novo AI-5, e é preciso tirar proveito da aragem amável que nos bafeja, seguir viagem ao lugar pretendido. Se formos firmes e prudentes, ele está logo ali, ao alcance da mão.
*Luiz Werneck Vianna, sociólogo, PUC-Rio