Os brasileiros não vão se despedir de si, apenas dizem um até breve
Bye bye, Brasil, querem nos embarcar para uma terra nova – por ora, está difícil de evitar – sem reinações de Narizinho, sem Jubiabá, sem um catolicismo gordo e compassivo, sem o culto da cordialidade, sem o jagunço do Euclides da Cunha e os retirantes de Graciliano, o abolicionismo do Nabuco, sem Gilberto Freyre, sem a Coluna Prestes, até sem a Petrobrás e o Banco do Brasil, sair assim, com as mãos abanando e as cabeças vazias. O embarque deve ser imediato, para que nós, que mal conhecemos o liberalismo, num país onde jamais o capitalismo foi uma ideia popular, passemos direto ao neoliberalismo e ao culto da teologia da prosperidade, glória a Deus.
Cirurgia de tal envergadura não é obra solitária, ela foi concebida durante décadas com argumentos vindos de vários setores da vida social, inclusive do PT, que desde suas origens investiu contra a tradição republicana brasileira e o centro político que a encarnava, tal como no episódio famoso, ocorrido em pleno regime militar, em que sua principal liderança declarou que o principal inimigo das classes trabalhadoras era a CLT, e não o AI-5, vindo a sustentar um sindicalismo de resultados em oposição às antigas lideranças sindicais, em boa parte tradicionalmente associadas ao centro político. Em outro momento, com Lula candidato em segundo turno à sucessão presidencial vencida por Collor, seu partido recusou a participação em seu palanque de Ulysses Guimarães, um dos grandes próceres do nosso liberalismo político, como antes declinara assinar a Carta de 88, obra, no fundamental, do centro político, sob a inspiração desse mesmo Ulysses, que a apresentou ao mundo com palavras memoráveis.
A desconstrução do centro político contou com a ação de outros personagens, como setores das elites originárias da dimensão do mercado, desde sempre, tal como no caso da sua acirrada oposição, nos anos 1930, à legislação social, refratária à regulação pelo direito da vida social e ao embrião de social-democracia admitido pela Carta de 88. E mais recentemente, pela ação do Ministério Público, que interpretou em chave salvacionista a luta justa e necessária contra a corrupção sem atentar para as suas consequências e sem discriminar alhos de bugalhos, comportando-se como um macaco solto numa loja de louças, com o que levou à lona a sua representação política.
Estamos em pleno mar, navegando com mapas incertos e pilotagem inexperiente, ela própria sem saber para onde nos quer levar. Os quadros econômicos selecionados pelo governante eleito, os principais formados na ortodoxia da Escola de Chicago, com seus compromissos conceituais e práticos com os processos de globalização, inarredáveis na medida em que correspondem a movimentos seculares das coisas pertinentes à economia mundo, ao menos desde as grandes navegações empreendidas pelo Ocidente – nossa Ibéria à frente –, em suas cabines de comando já se encontram contestados pelo trumpismo do futuro chanceler Ernesto Araújo. A bússola deve estar apontada para qual destino: o da globalização ou o da denúncia do globalismo?
Ruma-se para qual direção, a da autarquia e a do nacionalismo (isso com a turma do Paulo Guedes?), que, na linguagem de Trump, significa America first, atrelando nossa pobre carroça aos objetivos imperiais do presidente americano, que se deixou embair pela anacrônica guerra de civilizações ideada por Samuel Huntington?
Logo nós, que não viemos da matriz anglo-saxônica, mas da ibérica, e somos da família dos bandeirantes, e não da dos pioneiros, para lembrar as antigas lições de Viana Moog; nós, que seguimos a estrada universal em direito do sistema da civil law, esta, sim, entranhada na História do Ocidente, ao contrário do sistema da common law, que Hegel, por exemplo, não reconhecia como filho da razão, e sim do casuísmo de uma cultura singular, sem protagonismo, portanto, na marcha do espírito com que a criatura buscava seu encontro com seu Criador. O Ocidente é uma criação europeia e é aí que nós, os americanos, como reconheceram os fundadores da grande República do Norte, cultores dos autores do Iluminismo nos Federalist Papers, estamos instalados, não se podendo omitir, no caso brasileiro, a criação do seu Estado pelo herdeiro de uma dinastia europeia.
A metafísica rústica dos ideólogos do trumpismo, como o célebre personagem de Voltaire, ignora a sociologia do risco, tão bem estudada pelo sociólogo Ulrich Beck, na crença ingênua de que tudo no mundo se encaminha no sentido da sua melhor solução. Nosso planeta não conheceria uma crise ambiental, em que pesem os alarmes emitidos pela comunidade dos cientistas, inclusive da Nasa, uma agência americana de indiscutida legitimidade científica, acerca dos dados que se acumulam sobre os perigos do aquecimento global. A crer no que enuncia uma parte dos nossos futuros governantes, o desmatamento da Amazônia em nome de uma política expansiva das fronteiras do nosso capitalismo para o agronegócio e a mineração não importaria em riscos e sua denúncia não passaria de fabulações de intelectuais desavisados.
Não se deve chorar o leite derramado. O lado vencedor na sucessão presidencial foi esse que aí está. A oposição a ele não tem por que se precipitar. O mundo gira e a Lusitana roda. Por quanto tempo ainda haverá Donald Trump? E os militares, mais uma vez no proscênio, terão perdido a memória de suas grandes personalidades do passado, dos que lutaram em torno da bandeira do petróleo é nosso, do marechal Rondon, dos pracinhas que em campos de guerra na Itália enfrentaram com bravura o fascismo, das virtudes sem mácula do marechal Lott? E os seres subalternos, até quando suportarão o capitalismo sans phrase, em bruto e sem amortecedores, que ameaça vir por aí?
Os brasileiros não vão se despedir de si, apenas dizem um até breve.