O título remete à serenidade e, indiretamente, à ideia de revolução e luta pelas liberdades, e o livro em si fala de um personagem que, nascido em 1918, nos dá a honra de ser seu contemporâneo, depois de ter acompanhado parte conspícua das batalhas pela democracia segundo a ótica de um pequeno, mas importante, partido da esquerda contemporânea. Refiro-me ao relato de Sandro Vaia sobre a vida de um comunista singular (Armênio Guedes – sereno guerreiro da liberdade, Barcarolla, 2013), cuja leitura convida simultaneamente a uma reavaliação do passado e a uma posição no presente – esta última sempre tão difícil de tomar, se é que, como diz o filósofo, a ave da sabedoria só levanta voo ao escurecer e, por isso, estamos humanamente condenados a travar os combates do dia com uma consciência tão só parcial e muitas vezes enganosa.
O partido, naturalmente, é o PCB, criado no significativo ano de 1922, prenhe de acontecimentos que assinalariam a modernidade brasileira. Entre seus quixotescos fundadores, Astrojildo Pereira, intelectual fora dos padrões convencionais, admirador e estudioso arguto de Machado de Assis – paixão que o acompanharia pela vida afora e muitas vezes o salvaria da aridez sectária tanto na política quanto na literatura. Armênio chegaria ao “partido” – assim entre aspas, como se fosse “o” partido por antonomásia e todos os demais não passassem de ficção ou figuras casuais – em circunstância diversa e posterior, por ocasião da mobilização antifascista que também iria abalar internamente o Estado Novo e propiciar, logo em seguida à redemocratização de 1945, o curto período de legalidade do PCB.
Astrojildo e Armênio se cruzariam na história partidária, já então profundamente marcada por um traço específico do nosso país – a admissão da ala esquerda do tenentismo, simbolizada na figura de Luís Carlos Prestes -, bem como por uma característica generalizada dos velhos partidos comunistas – a adesão à União Soviética e ao corpo doutrinário que daí se irradiava para os demais partidos “irmãos”, o “marxismo-leninismo”.
Tempos de ferro e fogo, de clandestinidade, prisões e exílios. E também de enrijecimento dogmático, de cisões e excomunhões estrepitosas, como, para dar o exemplo canônico, as que acompanharam a denúncia dos crimes de Stalin e do seu sistema de poder, no já distante ano de 1956.
Prestes e Armênio – uma visão que tendia a soluções militares, marcada por uma assimilação positivista do marxismo, e outra que tendia a valorizar a política e os recursos da democracia, em cujo cerne estão a dissuasão, e não a força, o consenso, e não a coerção. O mais tradicional e moderado dos partidos da esquerda chegaria cindido a 1964. “No embate entre Jango e seu mais feroz opositor, o governador Carlos Lacerda, da UDN, Prestes achava que o PCB podia ficar no meio da briga e sair ganhando o poder que sobraria depois da mortal briga entre os dois lados.” Armênio e muitos outros, ao contrário, tiveram consciência imediata do alcance histórico da derrota e do salto de qualidade que o capitalismo iria conhecer entre nós, na sequência dos idos de março de 1964.
Debilitado pelas sucessivas cisões de quadros que iriam fazer a luta armada – Marighella, Gorender, Mário Alves -, o velho PCB, apesar de tudo, acharia forças para prestar um último e decisivo serviço à democracia brasileira, ao tornar-se “linha auxiliar do MDB” e apostar na crescente discrepância entre o arbítrio do regime dos atos institucionais e o resíduo de legalidade que se manifestava na competição eleitoral e no movimento associativo, mesmo sob severos condicionamentos. Uma estratégia que apontava, desde o início, para a derrota do regime discricionário mediante a obtenção de ampla anistia e, fundamentalmente, de uma Carta democrática – esta mesma a que lealmente nos devemos referir em todos os momentos, especialmente nos de crise e incerteza, como o que ora atravessamos.
Eis-nos, como dissemos no princípio, antes de um novo e iluminador voo da coruja, a nos haver não só com o legado de Armênio, como também com os problemas um tanto opacos do presente. Movemo-nos num ambiente em que o mundo virtual – num indício, talvez, de verdadeira mudança antropológica – facilita enormemente a difusão do anseio por uma “democracia direta” que, segundo seus adeptos radicais, eliminaria a mediação institucional e os organismos estáveis da representação.
Além do fato de o mundo virtual também estar atravessado de boas e más possibilidades, podendo gerar, no limite negativo, um “assembleísmo eletrônico” com todos os vícios do assembleísmo tradicional, resta a evidência de que a esquerda hegemônica não parece ter pela Carta de 1988 o apreço a que devem sentir-se convocados todos os cidadãos. Alguns dos seus dirigentes veem a crise como ocasião para “enfrentar a direita e levar o governo para a esquerda”, ainda que, a rigor, não tenham nenhum projeto alternativo de País ou de sociedade. Enxergam o conflito social legítimo como oportunidade de processos constituintes espúrios ou plebiscitos mal-ajambrados, que supostamente reuniriam um Executivo ainda mais hipertrofiado e a massa da população, fora ou dentro das redes sociais – mas sempre ao largo das instituições.
Num paradoxo só aparente, o caminho da fidelidade às regras do jogo democrático, como poderia ter sido em 1964 e como se patentearia nos anos da resistência, continua a ser a via mestra das mudanças substantivas, sem aventuras ou saltos no escuro. No velho PCB, em circunstâncias muito mais difíceis, pôde germinar um reformismo como o de Armênio Guedes. A esquerda hegemônica, hoje, está desafiada a fazer o mesmo: hic Rhodus, hic salta, diria conhecido pensador. E já não seria sem tempo.
* Luiz Sérgio Henriques é tradutor, ensaísta e um dos organizadores das obras de Gramsci no Brasil. Site: www.gramsci.org