A atual generalizada redução das classes a massas não prenuncia nada favorável
Guerras culturais têm uma aparência kitsch e costumam girar em torno de monstros fabulosos, a tal ponto que nunca se sabe muito bem se os contendores argumentam de boa-fé ou estão mesmo perdidos entre sofismas que inventaram com intenções pouco claras. Quando ouve falar da ameaça rediviva do bolchevismo mundial ou de inimigos imaginários apontados à execração pública – inimigos que, a depender da latitude, podem ser um milionário judeu, como George Soros, um pedagogo brasileiro, como Paulo Freire, ou ainda o demoníaco Antonio Gramsci de mil faces -, qualquer pessoa formada segundo padrões racionais e contemporâneos haverá de torcer o nariz com certo enfado. “Paranoia ou mistificação?”, poderá perguntar a si mesma, ecoando talvez Monteiro Lobato, grande intelectual moderno paradoxalmente reativo à modernidade artística que abria caminho há cem anos.
Esse nosso personagem de formação razoável sabe, entretanto, que com ideias não se brinca. Elas podem ser abstrusas e até divertidas, se consideradas com distanciamento, mas num tempo ideologicamente confuso e agitado, que a tantos chega a lembrar a crise dos anos 1930 e as soluções totalitárias então engendradas, têm o poder de formar convicções e sentimentos de grandes massas, tornando-se por isso mesmo uma força material tão densa e concreta quanto qualquer fato bruto da economia ou mesmo da realidade natural. Ideias podem matar ou, no mínimo, propiciar catástrofes históricas. Podem configurar aquele “assalto à razão” que um grande filósofo marxista do século passado denunciou com vigor na cultura alemã e que seria a antessala do nazismo – o mesmo filósofo que, no entanto, não viu acontecer o assalto semelhante que iria corroer por dentro a experiência do socialismo inaugurada em 1917.
Este não será um tempo de partidos – oficialmente em crise, eles que foram moldados segundo os requisitos da sociedade industrial, hoje em trânsito acelerado para a digitalização -, mas continua a ser de homens partidos e de má política. Expliquemo-nos sobre esta última expressão: a política é má quando, por deficiência subjetiva dos atores ou pela natureza inédita das transformações que varrem o mundo, não dá conta dos fenômenos, vê-se atropelada por eles, sem conseguir identificar as boas possibilidades existentes mesmo durante os processos mais tumultuosos. E não se trata, obviamente, de uma condição fatal: ela, a política, é má quando ainda não compreende tais processos e deixa homens e mulheres comuns sem a capacidade, tanto intelectual quanto emocional, de tomar conta das forças que dirigem sua vida. Como se costuma dizer, em tais momentos os fatos, e não os sujeitos, parecem estar no comando. E os resultados em casos assim são, no mínimo, sofríveis, se não desastrosos.
A política, quando parece ausentar-se nos momentos de crise aguda, “orgânica”, logo se vê substituída pela ideologia no pior sentido da palavra. Ágnes Heller, a dileta aluna do acima mencionado Georg Lukács, cujo horizonte se abriu para além do marxismo, incorporando, entre outros, o pensamento de Hannah Arendt, insistiu exatamente nesse ponto às vésperas da sua morte, no ano passado. Não é que a sociedade de classes seja um momento luminoso do passado ou que a política havida no seu âmbito seja um farol da razão ou um modelo inalcançável. Houve ditaduras, e ditaduras cruéis, no século 20; mas a atual redução generalizada das classes a massas não prenuncia nada particularmente favorável. Ontem e hoje, as formas totalitárias de poder medram exatamente quando essa redução se consuma.
A ideologia torna-se o alimento de má qualidade manipulado demagogicamente pelos tiranos ou aspirantes a tiranos. Na Hungria, a pátria de Heller, um nacionalismo étnico invade o espaço público e sufoca a vida democrática: a retórica xenófoba toma conta de um país que praticamente não tem imigrantes. A vida institucional sofre continuadas agressões da parte do Executivo todo-poderoso. A imprensa vê-se comprada pelos amigos ou apaniguados do poder – ou calada. Uma estratégia “hegemônica” rudimentar – uma espécie de “gramscismo” da extrema direita -, baseada em agressivo conservadorismo pseudorreligioso, limita os espaços de liberdade individual, vistos como o lugar por excelência do perigoso comunismo cultural e suas sedutoras “teorias de gênero”, sua anarquia espiritual, seu espírito globalista e apátrida.
Tudo isso, dizíamos, é um tanto kitsch, ou, para falar a verdade, tem a marca registrada do mau gosto e da mediocridade, da paranoia e da mistificação. Alguns ainda argumentarão que a pequena Hungria tem uma história democrática modesta, reduzida, como lembrava a própria Heller, ao tempo da primavera dos povos em 1848 ou da rebelião antissoviética de 1956. E que, por isso mesmo, os maus ventos que lá sopram não poderiam empestear as casamatas e as trincheiras mais robustas que são próprias do Ocidente, a começar pela mais antiga das democracias modernas, apesar de hoje assolada pela vulgaridade de um Trump. E mesmo o Brasil, depois de 1988, teria trocado os parênteses democráticos da sua história por uma democracia estável, amparada estruturalmente numa sociedade civil e econômica complexa e diversificada, que não mais autoriza aventuras autoritárias.
Há verdade neste último argumento, mas não convém subestimar os perigos do caminho. Entre eles, e não em último lugar, as belicosas guerras de cultura, que têm o condão de corromper a sociedade, dividi-la e empobrecê-la. A viva dialética da cultura, com seus combates e desafios, com seu lento e molecular trabalho de construção de valores e ideais comuns, é uma coisa. Bem ao contrário, as guerras e os guerreiros culturais, não importa a bandeira que ostentem ou o motivo que os agite, são um decalque simultaneamente farsesco e trágico de tal dialética. Há que evitá-los.