Sinais de alarme soam diante da devastação que Trump e Bolsonaro têm promovido
Poucas vezes um evento terá tanta relevância além das fronteiras de um país quanto as iminentes eleições norte-americanas, a indicar como, acima das reivindicações exclusivistas de soberania nacional da parte de atores deliberadamente cegos ou orgulhosamente obtusos, os processos de interdependência terminam por impor sua lógica e tornar menos dessemelhantes realidades originalmente distintas. É como se – considerando Estados Unidos e Brasil – o sistema político de cada qual se destacasse das respectivas matrizes históricas, individualistas num caso, organicistas no outro, e apresentasse o mesmo problema, de tal modo que, sinalizando futuras e cada vez mais frequentes influências recíprocas, os resultados americanos de novembro viessem a condicionar vigorosamente as coisas por aqui.
Em tese, a matriz anglo-saxã asseguraria, com razoável grau de previsibilidade, a boa saúde da democracia na América, enraizando-a em indivíduos livres e acostumados à participação na vida pública. Em contrapartida, ibéricos como somos, tenderíamos à arquitetura social “barroca”, perdido o indivíduo numa totalidade que não domina e frequentemente o esmaga, pelo menos na versão pessimista tantas vezes predominante. Estruturalmente liberal-democratas, os americanos; intimamente autoritários e às voltas com autoritarismos, condenados a regar monotonamente a mirrada planta da democracia, nós, brasileiros.
O fato é que o sistema político das duas grandes nações, por artes de um mundo que parece ignorar particularismos, encontra-se desafiado por uma questão análoga. Como efeito do abrasileiramento dos EUA ou da americanização do Brasil, ambos se tornaram casos de manual dos procedimentos em curso de “morte das democracias”, com a corrosão das suas normas escritas e não escritas, das suas regras e dos seus valores. Os sinais de alarme soam diante da devastação que, quase em paralelo, Donald Trump e Jair Bolsonaro têm promovido em circunstâncias já de si muito difíceis. E como advertem os estudiosos, a obtenção de um segundo mandato por líderes desse tipo configuraria uma situação ainda mais perigosa, sem exclusão da possibilidade de crises institucionais.
Há uma coleção de ineditismos na conduta de Trump que requer algum esforço analítico maior. No plano externo, quem jamais imaginaria o afastamento entre EUA e seus aliados tradicionais, os países do Ocidente democrático, além da admiração de Trump por dirigentes autoritários, incluído o agora arquirrival Xi Jinping? Quem suporia, há alguns anos, a aliança tácita com Vladimir Putin em chave antieuropeia, minando um projeto de superação de rivalidades que conduziram, só no século 20, a uma prolongada “guerra civil continental” entre 1914 e 1945?
O lema “America first”, que sintetiza a retirada das instâncias multilaterais, a começar pela ONU, pode ter uma leitura realista de que todo governante deve cuidar antes de tudo do próprio país e estaria arruinado se não o fizesse. Mas deve-se entendê-lo mais adequadamente como sintoma de renúncia ao universalismo dos valores liberais trazidos audaciosamente ao mundo pela revolução americana – afinal de contas, uma moderna guerra de libertação nacional. Renúncia, portanto, que explicita incapacidade de direção dos processos globais e recuo para um horizonte “corporativo”, que aquele país, sob Trump, só tem abandonado de tempos em tempos em favor de ações erráticas e unilaterais.
O mesmo déficit de hegemonia ocorre internamente. Poucas vezes, como agora, ocupou a sala de comando um governante voltado apenas para o próprio gueto de fiéis, a bradar contra a diversidade social, os avanços culturais e as oposições políticas, entendidos todos eles como diferentes expressões de um “inimigo interno” que ameaça o excepcionalismo e o “manifesto destino” americano. A deslegitimação dos adversários, que está no coração do conservadorismo “revolucionário”, é uma traição aos princípios liberal-democráticos e implica, em perspectiva, a substituição da persuasão por meios autocráticos de mando – por uma ditadura, em suma. Mesmo um moderado como Joe Biden aparece como cavalo de Troia da revolução de esquerda que ameaçaria o americano comum. E já há quem monte cenários em que Trump denunciará os resultados caso lhe sejam adversos, ou se recusará a deixar o poder. Nada mais “latino-americano”, na velha conotação, que, por óbvio, mencionamos sem subscrever.
Difícil imaginar que a convergência de crises apague os sinais de batismo das duas sociedades. O mundo globalizado, ao contrário do que pensam os detratores, não é uma abstração vazia na qual sumam as combinações particulares de liberdade e igualdade, indivíduo e comunidade. Contudo, seja no mundo “ibérico”, seja no “anglo-saxão”, o requisito para despontarem a diferença e a multiplicidade é a universalidade da democracia. Sem ela, como o comprovam cotidianamente Trump e Bolsonaro – o original e o rascunho –, não equacionaremos a atual e aguda crise civilizatória. Na verdade, nem sequer a perceberemos.
*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil