Derrotar as ideias extremas é o desafio que todo democrata deve continuamente se impor
Do ponto de vista democrático, o recente ciclo das esquerdas latino-americanas no poder, entre elas o petismo, não foi particularmente entusiasmante. Em seu conjunto, em grau maior ou menor, não souberam dirigir-se a toda a sociedade, ao optarem por uma ideia substantiva de democracia, hostil à dimensão que reputam “meramente” formal, fazendo-a acompanhar por estratégias discursivas fortemente divisivas, próprias de percursos já cumpridos, sem êxito, no passado.
O caso extremo, que, no entanto, chegou a ter pretensões de se tornar a matriz de transformações revolucionárias em boa parte do Continente, terá sido o bolivarianismo venezuelano, desde o começo tingido por um autoritarismo de feição militar que, recorrendo a instrumentos plebiscitários e arregimentando uma parte da população – por certo aquela socialmente mais destituída –, foi capaz, como ainda hoje é, de obter sucessivas vitórias eleitorais, por bem ou por mal.
Nenhuma dúvida, especialmente durante os sucessivos mandatos de Hugo Chávez, de que, manipulações à parte, o regime contou com adesão majoritária. Um dos requisitos da democracia, assim, parecia plenamente preenchido, a saber, o respeito à vontade majoritária na constituição dos governos. Menos ou nada respeitados, ao contrário, ficavam outros requisitos igualmente essenciais, como o respeito aos direitos da minoria, que do ponto de vista formal deve ter a possibilidade de se tornar governo em eleições disputadas em razoáveis condições paritárias.
O mau padrão bolivariano, crescentemente cultivado a partir da primeira vitória de Chávez, ainda no final do século passado, deitou raízes e se espalhou, conquistando adeptos até mesmo entre intelectuais. Chávez, naturalmente, surgia como a encarnação – sem restos – de todo o povo. Um redivivo pai fundador, capaz de recolocar o Estado sobre novas bases e de encaminhar transformações supostamente socialistas à altura do século 21. Em certo momento, a busca da “felicidade social” chegou a se institucionalizar na forma de um ministério. Por óbvio, quem se opusesse – ou se opõe – aos desígnios oficiais só podia ser visto como um sabotador ou um agente do imperialismo. Um “esquálido”, na novilíngua chavista.
A Argentina dos Kirchners e, em tom mais brando, o Brasil de Lula reiteraram o novo padrão retórico. Por certo, sociedades mais complexas do que a venezuelana requerem objetivamente um discurso público menos marcado pelo maniqueísmo. Apesar disso, o recurso lulista da primeira hora consistiu em brandir a “herança maldita” dos anos FHC, bordão repetido infinitas vezes desde sempre, a ponto de borrar o aspecto formalmente exemplar da transição de um governo para outro, em 2003. Opor-se a Lula era pertencer, automaticamente, à “direita neoliberal”, um espantalho conveniente sob cuja sombra se iria gradualmente congelar a imaginação política do País nos moldes estatistas que no passado presidiram, à direita e à esquerda, seus surtos de modernização.
A “linguagem do ódio” fez sua potente reaparição em nossa história política, minando a constituição possível de uma cultura cívica minimamente compartilhada. Não se chegou, como na Venezuela, ao cinismo de promulgar pretensa legislação constitucional contra o ódio, depois de semeá-lo abundantemente; mas, tal como lá, atribuiu-se aos adversários o espírito da “casa grande”, em pânico diante dos avanços – mais proclamados do que reais – da “senzala”. E esse constitui agora o legado pior do petismo, sua peculiar herança maldita, a qual, recortando de alto a baixo nossa sociedade, acabou por gerar seu oposto simétrico na figura – agora, sim – de uma direita primitiva, cuja expressão política mais evidente simula portar um fuzil em suas intervenções públicas – num país devastado pela insegurança e pelas mortes violentas.
Na verdade, assim foi que “nos atualizamos”, paradoxalmente, em relação a algumas das correntes mais perversas que se agitam mundo afora. A começar por Trump, algo mudou na extrema direita contemporânea, dando-lhe não só confiança agressiva, como também capacidade de explorar medos, frustrações e ressentimentos. Nem mesmo nos Estados Unidos, uma democracia liberal plurissecular, passou inobservada a mudança genética da velha direita republicana, a ponto de fazer um político solidamente conservador como o senador John McCain protestar contra a retórica de “solo e sangue” que se afirma contra as marcas de origem de seu país. Ou o contestadíssimo Georg W. Bush lamentar a degeneração do nacionalismo em nativismo vulgar. Para não falar dos ventos xenófobos que varrem a velha Europa, em que no tronco enfermo do antissemitismo agora se enxerta a doença islamofóbica.
Entre nós, ainda não é possível avaliar o impacto eleitoral desta “atualização”, com sua explosiva mistura de trevoso conservadorismo comportamental e liberalismo econômico radical, se é que se levará a cabo esta outra mudança genética na extrema direita nativa, originariamente portadora de sua própria versão de capitalismo autoritário e nacionalista. Da mesma forma, observando o polo simétrico, não sabemos até onde a sociedade resistirá à reproposição do populismo radicalizado “de esquerda”, com o qual voltou a girar pelo País o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, para impor como fato consumado uma candidatura presidencial às voltas com conhecidos e crescentes problemas judiciais.
A política democrática requer que tais ideias extremas sejam paulatinamente postas nas margens da arena pública. No rigor do termo, são excêntricas e constituem tentativas desastradas ou de retorno a um passado mítico de lei e ordem, ou de fuga para um futuro com mais igualdade (admitamos para fins de argumentação), mas, certamente, menos liberdade. Derrotá-las é o desafio que a vasta e variada área dos democratas deve continuamente se impor.