A persistência das divisões atuais somente nos garantirá uma continuada decadência
Pode suceder que culturas políticas fortemente divisivas, mais perto do seu ocaso, descubram a pertinência de ideias que superem ou pelo menos subordinem a linguagem de parte ou facção. O comunismo do século 20, uma expressão desse tipo de cultura, ainda nos anos 1930 teve momentos positivos, como nas frentes populares, quando, com idas e vindas, firmou a aliança com os liberal-democratas e muitos outros, contribuindo para a derrota do nazi-fascismo. E saltando algumas décadas, já a caminho do fim, do interior da sua vertente ocidental brotaria a “heresia” eurocomunista, que afirmava, dessa vez com consistência, a universalidade da democracia política.
O panorama, assim, abriu-se para a recomposição com os social-democratas. No Ocidente, com suas instituições progressivamente ampliadas e sua “sociedade aberta”, se se quisesse manter o uso do termo “socialismo”, então não haveria dúvida: a democracia passaria a ser o caminho do socialismo, não para o socialismo. A “meta final” ficava em segundo plano ou mesmo desaparecia. A travessia era tudo, e para percorrê-la devia-se deixar de lado a bagagem autoritária do passado.
Idealmente, um partido como o PT, criado no momento em que se saía de uma ditadura e, ao mesmo tempo, se prenunciava o fim do comunismo, deveria ter tido nesse conjunto de valores um alicerce bem assentado. A formação de seu grupo dirigente e a educação de seus militantes se valeriam dos recursos inéditos que o País redemocratizado podia oferecer. Nada de culto à personalidade nem formação de subculturas dogmáticas e excludentes – ou, para usar termos mais atuais, o encerramento em “bolhas eletrônicas”, que desprezam a dúvida e erguem muros tão ou mais altos do que os de pedra e cal.
Não foi o que aconteceu. O novo partido permaneceu atado a um sistemático espírito de cisão que o impediu de participar positivamente de momentos cruciais da transição. Chegou a votar contra o texto da Constituição! Parecia cuidar de si próprio, absorvido na dialética interna de grupos e correntes que só se uniam em torno do líder promovido a mito e, posteriormente, a mártir. Sua excepcionalidade estava garantida a priori e dela viria o resgate de um país perdido em séculos de História infeliz. A recusa de alianças era marca registrada. E suas atitudes anunciavam uma guerra “contra tudo”, muito próxima, por sinal, dos populismos contemporâneos, inclusive de direita.
Pode-se perguntar sobre as razões do crescimento eleitoral até o grande êxito de 2002. Haveremos de convir que prometer um novo início em tempos de mal-estar da democracia é uma jogada de mestre. Essa mesma sabedoria tática levou à assimilação do programa de bolsas e à demonização do adversário, sem que se tornasse, no entanto, uma visão estratégica de Estado e de sociedade. Mas houve coisa mais séria, se cuidarmos do nexo nacional-internacional. O novo partido associou-se, e aí já sem sabedoria alguma, ao caudilhismo latino-americano de viés “nacional-popular”, que hoje, entre outros fracassos, nos põe diante da catástrofe sem fim da Venezuela.
E foi assim que o petismo, um neologismo sem força para designar uma cultura política amadurecida, viria a ressuscitar a concepção maniqueísta da velha esquerda, ainda que sem o pathos revolucionário. Acossado por dificuldades judiciais, iria mais adiante entrincheirar-se numa visão redutivamente classista do Estado “burguês”, de cujos mecanismos supostamente monolíticos passou a se dizer vítima. E as consequências não se deteriam nas fronteiras partidárias: a linguagem “radical” terminou por gestar, como reação quase automática, um antipetismo avassalador, regressivo e autoritário.
Em ambos os casos, sucessos eleitorais à parte, podemos reconhecer a mesma dificuldade de articular um discurso complexo sobre o País e, afinal, dirigi-lo com o método do consenso. De fato, opondo agressivamente mito contra mito, doutrina contra doutrina, a emergente “narrativa” antipetista tem análogas pretensões refundadoras, que num certo momento chegaram a expressar-se na ideia estranha de uma Constituinte de sábios. O hibridismo vem a ser sua marca constitutiva e o sinal de alerta para os mais atentos: o ultraliberalismo de seu expoente econômico não combina com o histórico estatista da liderança máxima e seu entorno de militares reformados. A política que apregoa é a antipolítica dos nossos tempos: uma razzia dirigida contra o “sistema”, sem que se saiba ao certo, ou sem que se saiba absolutamente, qual material será empregado na reconstrução. Não é certo que tenha qualidade melhor.
Este vazio que acompanha toda incursão populista contra sistemas políticos em crise também aqui se busca recobrir com o apelo ao antimoderno no plano das crenças, dos costumes e orientações de valor. O motivado interesse por tudo o que define o perfil de uma sociedade tolerante – direitos humanos, pluralidade de estilos de vida, respeito aos valores de crentes e não crentes – se vê abafado pelo fragor de uma “guerra cultural” inédita entre nós, mas já testada, e aprovada, em outras latitudes. A sensatez parece bater em retirada diante de ideólogos que simulam viver ou, o que é mais grave, acreditam viver nos tempos sombrios da contraposição mortal entre capitalismo e comunismo.
Se quiser ir além do petismo, a esquerda terá pela frente uma longa temporada de autorreforma – na verdade, um verdadeiro processo constituinte, que ela irresponsavelmente andou receitando para o País. Com métodos, categorias e linguagem renovada, poderá então contribuir para um diálogo vivo entre culturas e tradições, e até para a mútua “contaminação” entre elas, como convém às sociedades da diversidade. De resto, a persistência das divisões atuais só nos garantirá uma continuada decadência para a qual – até hoje – nosso país não parece ter sido talhado.