Luiz Sérgio Henriques: A refundação necessária

Reconectar partidos e ideias requer a decisão de nos pormos nos marcos definidos em 88

Há formas e formas de encarar situações críticas, e lá diz o poeta que mesmo um copo vazio, bem observado, está cheio de ar. Em meio às agruras presentes, pressentimos, às vezes sem plena e cabal consciência, que a Carta de 1988 é o que impede sobressaltos, como a convocação de constituintes exclusivas para tal ou qual finalidade, especialmente a reforma política – que há de vir, mas por outros meios. Entre candidatos presidenciais bem posicionados, existem os afeitos à ideia de aumentar perigosamente a eletricidade ambiente, tornando-a mais “intensa”, seja qual for o significado disso.

Afinal, vivemos tempos de crise das democracias e os remédios que se aviam em laboratórios de fundo de quintal nem sempre trazem a cura, quando não são, como no caso dos populismos, piores do que o próprio mal.

Paradoxos não faltam. As instituições de controle se ativaram como nunca. Excessos à parte, puseram a nu mecanismos de financiamento político-partidário de cuja existência suspeitávamos, sem ter a exata noção de seu amplo poder corrosivo. Grupos dirigentes inteiros foram chamados às barras da lei, o que desarticulou alguns dos mais importantes partidos da redemocratização e os respectivos projetos de poder. Ao mesmo tempo, o ambiente de terra arrasada daí nascido é o mais propício a aventureiros de todos os matizes, que se alimentam da antipolítica que eles mesmos semeiam, ao se colocarem “contra tudo o que está aí”. Esta é a hora clássica dos demagogos.

Se as instituições de fiscalização vieram para ficar, com suas exigências de controle e transparência, o sistema político reage e se reagrupa como pode. Tem a seu favor o fato óbvio de que não existe democracia sem partidos e sem Parlamento digno do nome.

Velhos comunistas costumavam dizer que a mais medíocre das “democracias operárias” era preferível à mais pujante das “democracias burguesas”. Devemos parafraseá-los em outro sentido: do ponto de vista de uma vida civil moderna, como a que precisa existir no Brasil, não haver democracia parlamentar, verdadeiramente livre e plural, é o pior dos mundos.

Como dissemos, o establishment reage, vale-se das regras de financiamento exclusivamente público, aposta na maior visibilidade dos detentores de mandato, de modo que se vislumbra um nível baixo de renovação do Congresso e das assembleias estaduais. Eppur si muove, e algo como um processo constituinte, nada espalhafatoso, mas quem sabe promissor, pode estar ocorrendo sob nossos olhos. Este processo, distante de qualquer subversivismo rupturista, atinge um dos pilares da vida institucional: exatamente, o sistema de partidos, às vésperas de ser – em parte – racionalizado com a cláusula de barreira já prevista para este outubro.

Regras, quando pertinentes, costumam ser bem mais do que meros artifícios técnicos. Já que o voto é livre e as urnas são imprevisíveis, impossível dizer quantos e quais partidos terão plena existência parlamentar e assim poderão condicionar, positiva ou negativamente, o futuro programa de reformas.

Sabe-se apenas que serão em número bem menor do que as atuais três dezenas. Deixando de lado qualquer previsão minuciosa, aqui propomos um mapa provisório do sistema de forças em surgimento, apontando alguns dos prováveis rumos à frente.

Já temos de nos haver com uma extrema direita competitiva – e agressiva – pela primeira vez desde a redemocratização. O partido ou grupo de partidos que nesta área se firmarem estarão em linha com tendências globais. Não por acaso seu líder se derrama em elogios à figura tutelar de Trump e tenta capitanear uma versão nativa da Christian Right, com “Deus acima de tudo”. Será capaz de dirigir toda a sociedade com base em valores que dificilmente seriam os de uma apregoada “sociedade aberta”?

Partidos tradicionais, como PP, DEM e em certa medida MDB, vivem uma versão peculiar do dilema dos velhos partidos operários, quando se dizia que as ideias deviam vir “de fora” do aparelho partidário.

Veem-se assediados por vozes e movimentos que postulam um liberalismo distante das esferas do Estado, nas quais aqueles partidos se movimentaram até hoje com maestria e conhecimento de causa. A capilaridade que detêm parece condenar ao insucesso as novas vozes, mas, sem estas, organismos tradicionais caducam e morrem, antes de construir suas pontes para o futuro.

Este “centro ampliado”, de resto, é vital para barrar a pretensão hegemônica da ultradireita, mas não basta. A revitalização do PSDB será requisito para dar gravitação a uma frente democrática de novo tipo, com soluções positivas para as urgências econômicas e sociais do País. Nascido de notável constelação de intelectuais e com a vocação de representar as camadas médias modernas, um bom desempenho tucano nas urnas recolocaria o dilema deste partido, a saber, estar no governo e não desaparecer da sociedade. E desta vez sem espaço para o erro.

Tal como da extrema direita, pouco se pode esperar da esquerda dominante, pelo menos por ora. Até por uma questão geracional, teria cabido aos grupos dirigentes do petismo renovar a política e dar-lhe novo fôlego. Aqui, sim, teria sido necessária uma transformação que liquidasse mitos revolucionaristas e impedisse seu reaparecimento, ainda que só para fins de retórica ou de sustentação a toscos projetos externos, como o bolivarianismo. Uma missão que o petismo deixou de cumprir – e sem refletir sobre este descumprimento ele dará mil voltas sem sair do lugar.

Reconectar partidos e ideias – de preferência a ideologias -, ação e programa, sociedade civil e sociedade política requer a decisão de nos pormos nos marcos constitucionais livremente definidos há 30 anos. A República não precisa de refundação; os partidos que deveriam vertebrá-la, sim. Distinguir uma coisa da outra é um dos modos de separar amigos e inimigos da sociedade aberta.

 

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