Papel democratizador dos velhos comunistas, no Ocidente, deveria ser lembrado por todos
Os cem anos da revolução bolchevique provavelmente não nos darão – ainda! – a trégua necessária para pôr em perspectiva acontecimentos que estiveram no cerne da “segunda guerra europeia dos 30 anos” e, mais do que isso, lançaram ondas de choque por toda parte – não em último lugar, sobre o vasto mundo então colonial. E talvez não seja para menos: o comunismo histórico, assim como várias outras correntes do século passado, foi intensamente vivido como uma das tais religiões laicas em choque de vida e morte, com sua vontade de assaltar os céus e torná-los uma realidade imediatamente terrena.
Impossível recapitular, mesmo sumariamente, as vicissitudes do “primeiro Estado operário”, surgido entre os escombros da guerra de 1914 e da guerra civil subsequente. Um Estado operário erguido, ainda por cima e contraditoriamente, num país de ampla base rural e costumes autocráticos profundamente enraizados. A dirigir isso que hoje parece uma tarefa irrealizável estiveram o leninismo e, depois, o stalinismo: modalidades militarizadas da política não exatamente iguais, mas, ambas, com um déficit fatal de pensamento democrático ou, caso se queira, com uma visão jacobina de democracia avessa às conquistas do liberalismo, o que daria uma fisionomia despótica à construção do socialismo soviético.
Em vez da recapitulação impossível, mais vale nos determos no “pecado oriental” daquele Estado e dos outros que, depois da 2.ª Guerra, a ele se somaram por força de ocupação e constituíram o “campo socialista”, com as instituições politicamente iliberais que nasceram no começo acidentado e aventuroso do bolchevismo no poder. Um patriarca da esquerda italiana, Pietro Ingrao, identificou como “vício de origem” da ideologia comunista o repúdio à democracia e a escolha da violência revolucionária como método privilegiado de ação. Um método que por definição exclui, divide e mata, como se viu na coletivização forçada dos anos 1930 – de fato, uma guerra civil disfarçada que teve como alvo o vasto mundo dos camponeses, produzindo a fome, a carestia e o gulag.
O repúdio à democracia prolongar-se-ia pelas décadas afora e se materializaria numa rígida estrutura estatal ocupada pelo partido único, incapaz de se renovar, mesmo quando as condições iniciais de cerco se desvaneceram ou se atenuaram razoavelmente, como foi o caso do quadro que se abriu com a vitória sobre o nazismo e o fascismo – uma contribuição extraordinária da antiga URSS, não por acaso ao lado das potências do capitalismo democrático. Aqui, certamente por causa da natureza do mal absoluto de que se revestia o nazismo, os comunistas de Stalin assumiram-se corajosamente como a ala esquerda das democracias, em defesa do patrimônio comum ameaçado.
Estruturas enrijecidas, no entanto, têm dificuldades hegemônicas intrínsecas. Não importavam muito o desfile dos tanques na Praça Vermelha, a ruptura do monopólio americano da bomba ou a paisagem azul vista por Gagarin do espaço. Quem não tem capacidade de direção pode se esconder sob o disfarce de atitudes agressivas, mas no fundo não agrega nem atrai. O anticapitalismo, entendido como contínua reproposição de confronto com o outro campo, sobrepunha-se nos fatos ao antifascismo: o primeiro é uma espécie de chamado das selvas, um convite a cerrar fileiras e a falar grosso; o segundo, ao adotar valores “burgueses”, cedo ou tarde obriga a um repensamento e a uma revisão dos métodos e da própria concepção do mundo. Algo muito mais difícil e arriscado, naturalmente.
Não se sabe muito bem quando a URSS e o campo soviético perderam a disputa com o Ocidente, fosse ela direta e conflituosa, fosse redefinida nos termos da competição econômica e da “coexistência pacífica”. Talvez mais cedo do que normalmente se pensa, o século 20 transformou-se no “século americano” por excelência. O americanismo, tal como percebido no cárcere por um marxista singular, não era só um método de produção revolucionário ou uma nova concepção de fábrica, implantada pelo fordismo, mas uma matriz de comportamentos individuais e um projeto de sociedade mais racional. No entanto, para a maior parte dos marxistas, a falsa percepção de catástrofe iminente impediu a compreensão do modo como o capitalismo se autorreformava e seguia adiante com êxito, especialmente quando o idioma liberal era falado com sotaque universalista. Sirvam como exemplo algumas experiências já dos anos 1930, como o New Deal rooseveltiano, e as do segundo pós-guerra, quando as social-democracias, secundadas em alguns casos por poderosos partidos comunistas, capitanearam as modificações que desaguaram na “era de ouro” do capitalismo reformado.
Difícil fazer um balanço equilibrado da trajetória comunista. No poder, o modelo bolchevique produziu estruturas autoritárias ou, reconheça-se, totalitárias, que afinal se mostraram frágeis e ruíram. Fora do poder, deve-se admitir que aquela trajetória teve luzes às vezes intensas. O próprio Ingrao, cuja capacidade autocrítica destacamos, constatou a ação positiva dos comunistas na organização de uma classe – a dos trabalhadores, mas não só – e na sua integração à sociedade inclusiva, ampliando regras e valores da democracia – rigorosamente, um bem coletivo.
Eric Hobsbawm convidou-nos a uma visão livre de uma das muitas ironias que a História, essa dama caprichosa, acabou por nos reservar: o fato de a revolução russa, que parecia encarnar o mais temido dos fantasmas, na verdade ter salvado duplamente a civilização “adversária”. Na guerra, aniquilando Hitler; na paz, estimulando, até pelo medo de algum novo evento revolucionário, sua reforma e sua capacidade de se expandir além da feição original. Descartado cabalmente o método da violência, o papel democratizador dos velhos comunistas, no Ocidente, deveria ser lembrado por todos nesta hora difícil.
* Luís Sérgio Henriques é tradutor e ensaísta. É um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci