O Brasil findou. Ou melhor, um certo Brasil. O Brasil de Covas, Ulysses, Pedro Simon, Marina Silva, Tancredo Neves, José Guilherme Merquior, Celso Furtado, Darcy Ribeiro. A árvore, que produziu esses frutos, chamava-se pau-brasil. Foi trabalhado por Mario de Andrade, Manuel Bandeira e Tarsila do Amaral. Deu também outro tipo de frutos: Sérgio Cabral, Garotinho, Eduardo Cunha, Aécio Neves, José Dirceu. E Marcelo Odebrecht.
Um Brasil desigual. Mas um Brasil com uma cultura específica, impregnada de respeito a dois valores universais e tropicais: diversidade e liberdade. Valores humanísticos, brasileiros, telúricos e vinculados a nossos desvarios.
A diversidade acolhendo alegremente a arte de Grande Otelo, o som de Pixinguinha e o senso social de Zeca Pagodinho. A liberdade exercida em duas direções construtivas: a direção de Juscelino Kubitschek, do poder para as corporações. Anistiando generosamente os revoltosos de Jacareacanga e Aragarças. E a direção da dupla Ulysses / Tancredo, da coragem contra o poder, dueto tático enfrentando as botas cansadas de regime fragilizado em si próprio.
Era bela costura. Apesar da inflação obscena de dez por cento ao mês. Só extinta pelo talento de economistas brasileiros. No Plano Real. Apoiado por um presidente correto, irrequieto, Itamar Franco. Depois, veio a frustrada proposta ética do PT. Na vertente necessária de uma social democracia tropical. Acalentada no berço acadêmico da USP com os tucanos. E na simbiose síndico-católica de metalúrgicos e padres.
A história do pau-brasil pode ter sido escrita com níveis variados de consciência cívica. Na inspiração de movimentos políticos e sociais que se antagonizavam. Mas obedeciam, desde a geologia dos tupinambás, a uma concepção humanista de estrelas em céu aberto: consolidar nação democrática nas veias estancadas da América Latina. E afirmar projeto cultural moreno ao Sul do Equador. Mesclado de resiliente criatividade. E de sedutor requebro vindo de percussivo sol africano.
Apesar de desvios e da corrupção, esse perfil político apoiava quatro objetivos contemporâneos. Que colocavam o Brasil na soleira da modernidade: primeiro, a sustentabilidade ambiental na defesa da Amazônia; segundo objetivo, a escola de Anísio Teixeira isenta de cultos para confirmar o Estado laico; terceiro objetivo, a valorização da Constituição como única saída viável para resolver impasses políticos; e, quarto, a liberdade de imprensa como pilar da democracia.
Este era o quarteto do pau-brasil que se assumia moderno no pensar e no agir: sustentabilidade, Estado laico, respeito à Constituição e imprensa livre.
Mas, eis que somos intimados a uma angustiante viagem ao atraso. Num imprevisto processo de autodesconstrução. Pela ordem:
1. O governo subtrai estruturas fiscalizadoras em unidades administrativas que impediriam queimadas na floresta;
2. O governo queda-se inerte, perdido, sem ter definido, a esta altura de novembro, o planejamento estratégico da educação brasileira. Como está assentado no relatório dos deputados Rigoni e Tabata.
3. Um representante do clã oficial anuncia a restauração do AI 5 recuperando calunioso atentado à racionalidade institucional;
4. O presidente da República ameaça rede de comunicação com a revogação da concessão por causa de uma reportagem que contrariou o príncipe.
A capacidade de resistir do pau-brasil é histórica. Sobreviveu nos silêncios do patriarca, José Bonifácio. Reinaugurou-se em 32 com a bravura dos paulistas. Foi reiterada em 45 com o livrinho do general Eurico Dutra. E, em 1985, com adágio a várias mãos, civis e militares, passando por estremecido leito do Hospital de Base, em Brasília.
A alma do Brasil traz esperança esperta. Imprevisível. Tecida no gênio de brasileiros que nos lembram do tamanho intelectual do país: de Oscar Niemeyer a Cícero Dias; de Machado de Assis a Glauber Rocha; de Gilberto Freyre a Florestan Fernandes; de Tom Jobim a Nelson Freire.
Quando o destempero dos insensatos quiser abalar nossa crença no pau-brasil, lembremos o recurso que não nos faltará: o talento dos brasileiros.