O nazismo não realizou a estatização da economia e da sociedade, mas sim a privatização do Estado
O chanceler Ernesto Araújo afirma e reafirma que o nazismo é de esquerda. Diante da insistência, o governo alemão, historiadores, cientistas políticos e economistas entregaram-se ao labor de ridicularizar e massacrar tais afirmações e reafirmações.
Nosso chanceler Araújo padece de um vício intelectual que compromete gravemente a compreensão dos processos sociais, o vício do nominalismo. Resumidamente, trata-se do expediente primário de resolver controvérsias atribuindo nome às coisas: “comunista”!, “nazista”! Os conceitos naufragam nas banalidades da primeira infância: nenê viu a uva.
Vou começar com Karl Polanyi. Em sua obra-prima, “A Grande Transformação”, Polanyi arriscou a pele na aventura de investigar os fundamentos sociais e econômicos do coletivismo que assolou o planeta nas três décadas inaugurais do século passado.
Na esteira das instabilidades do primeiro pós-guerra e da Grande Depressão, diz Polanyi, o instinto de autoproteção da sociedade suscitou reações que visavam conter os danos humanitários gerados pela operação dos mercados desatinados.
Na visão dos economistas liberais de hoje e de sempre, o mau funcionamento da economia ou a eclosão das crises devem ser tributadas às tentativas de interferir nas leis que governam o livre mercado. Polanyi inverte o argumento: é a utopia do mercado autorregulado que desencadeia as reações de autoproteção da sociedade, contra o desemprego, o desamparo, a falência, a bancarrota, enfim, contra a exclusão dos circuitos mercantis, o que significa, na prática, a impossibilidade de acesso aos meios necessários à sobrevivência humana.
Essas reações são essencialmente políticas: envolvem a tentativa de submeter os processos impessoais e automáticos da economia ao controle consciente da sociedade. Nos anos 30, Polanyi viveu um momento da história em que a revolta contra o desemparo e a insegurança revelou-se tão brutal quanto os males que a economia destravada impôs à sociedade. Ao estudar o avanço do coletivismo nessa quadra, Karl Polanyi concluiu que não se tratava de uma patologia ou de uma conspiração irracional de classes ou grupos, mas sim de movimentos nascidos das entranhas do mercado autorregulado.
Com o colapso da economia, a superpolitização das relações sociais tornou-se inevitável. O despotismo da mão invisível foi substituído pela tirania visível do chefe. O político e a polícia começam a invadir todas as esferas da vida social, como fossem suspeitas toda e quaisquer forma de espontaneidade.
A Grande Depressão colocou sob suspeita as pregações que exaltavam as virtudes do liberalismo econômico. Frações importantes das burguesias europeia e americana tiveram que rever seu patrocínio incondicional ao ideário do livre mercado e às políticas desastrosas de austeridade na gestão do orçamento e da moeda, diante da progressão da crise social e do desemprego. Assim que a coordenação do mercado deixou de funcionar, setores importantes das hostes conservadoras, não só na Alemanha, aderiram aos movimentos fascistas e ao controle estatal das relações econômicas, como último recurso para escapar à devastação de sua riqueza.
Hanna Arendt, no clássico “As Origens do Totalitarismo”, ocupa-se, sobretudo, da emergência do nazismo e do stalinismo como fenômenos do igualitarismo totalitário que vocifera: “Se você não é igual a mim, não tem direito a existir”. Esse igualitarismo de manada pressupõe paradoxalmente a superioridade de um modo de ser sobre outros e termina nas tentativas de apagar pela força as diferenças de posição social e de estilos de vida.
Diz Arendt: “O fato de que o ‘pecado original’ da acumulação de capital tenha requerido novos pecados para manter o sistema em funcionamento foi eficaz para persuadir a burguesia alemã a abandonar as coibições da tradição ocidental… Foi esse fato que a levou a tirar a máscara da hipocrisia e a confessar abertamente seu parentesco com a ralé”.
A escória, na visão de Arendt, não tem a ver com a situação econômica e educacional dos indivíduos, “pois até os indivíduos altamente cultos se sentiam particularmente atraídos pelos movimentos da ralé”. Esses indivíduos mutilados executam os processos descritos por Franz Neumann, em “Behemoth”, o livro clássico sobre o nazismo: “Aquilo contra o que os indivíduos nada podem – e que os nega – é justamente aquilo em que se convertem”.
O totalitarismo nasceu das entranhas da sociedade capitalista dilacerada, provocando a derrocada do Estado liberal em que o exercício da soberania e do poder deve estar submetido ao constrangimento da lei impessoal e abstrata.
Como mostra o filme de Lucchino Visconti, “Os Deuses Malditos”, o nazismo não realizou a estatização da economia e da sociedade, mas sim a privatização do Estado. Os interesses de grupos privados se apoderam diretamente do Estado, suprimindo a sua independência formal em relação à sociedade civil.
Peter Gay incita os pensadores da sociedade a considerar as relações estabelecidas por Freud entre biografia e cultura na sociedade de massas: “Os estudiosos da sociedade, sem excluir os escritores imaginativos, têm certamente sabido há bastante tempo que em grupos os indivíduos podem retornar a estados primitivos da mente, sujeitar a sua vontade a líderes, desconsiderar restrições e o ceticismo sensível que a educação cultivou neles tão dolorosamente”.
Seria uma descortesia dizer que desperdiço vela com defunto de segunda. Para não descumprir regras de civilidade, teimo em repetir aos ouvidos de Araújo: a sociabilidade moderna se move entre a inevitável pertinência a uma cultura produzida pela história e a pluralidade dos indivíduos “livres”. A história dessas sociedades “produziu” o mercado, a sociedade civil, o Estado Moderno, suas liberdades e seus interesses.
Essa forma de sociabilidade, reivindicada pelo liberalismo político, rejeita a submissão dos indivíduos livres a transcendências religiosas, moralistas e midiáticas. As indigências do chanceler Araújo pretendem se colocar “fora” das misérias do mundo da vida, acima do penoso exercício de compartilhar a razão com os demais cidadãos livres e iguais em sua diversidade.
*Luiz Gonzaga Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Em 2001, foi incluído entre os 100 maiores economistas heterodoxos do século XX no Biographical Dictionary of Dissenting Economists.