Desta vez não houve Cisne Negro externo a pôr fim ao otimismo dos mercados, e sim a difusão do coronavírus
A teoria econômica no início do desenvolvimento do capitalismo, no final do século 19 e começo do 20, era mais um tratado religioso escrito pelos chamados economistas clássicos do que uma avaliação dos problemas reais que a incipiente economia à época apresentava. O homem que vivia a dinâmica das economias de mercado era justo, racional e religioso. John Maynard Keynes foi o primeiro pensador sobre as questões econômicas que desmitificou a forma de dogma religioso que prevalecia até então. Ele delineou os valores do verdadeiro Homem Econômico que existe nos mercados e não a imagem criada pelo dogmatismo do chamado homem racional.
A terrível crise da depressão econômica dos anos 30 desmoralizou o arcabouço teórico e prático do capitalismo puro e validou as observações mais importantes de Keynes e de um pequeno número de economistas ao seu redor. Mas o boom econômico no pós-guerra nos Estados Unidos permitiu que uma nova leitura mais realista dos ideólogos religiosos do capitalismo fosse desenvolvida, principalmente nas universidades americanas. Chicago passou a ser a nova Roma na defesa dos princípios reescritos e chamados de neoclássicos. Pouco a pouco uma série de mecanismos criados nos anos da depressão foram sendo desmontados ou reescritos com menor capacidade de intervenção dos governos nos mercados.
Com a ascensão de Ronald Reagan, uma nova geração de políticos do Partido Republicano retomou a “cruzada santa” dos clássicos de negar ao Estado o direito de restringir a liberdade individual de investidores e empresários. O sucesso econômico dos anos Reagan trouxe de volta a ilusão da racionalidade do sistema e que havia sido perdida nos anos terríveis da depressão.
Mas mesmo marginalizados pela dominância do pensamento neoclássico alguns economistas continuaram a atualizar os principais conceitos desenvolvidos por Keynes em relação à instabilidade estrutural das economias de mercado. Um deles foi Hyman Minsky que, apesar de formado em matemática pela Universidade de Chicago, acabou se dedicando profissionalmente ao estudo de economia a partir do trabalho teórico desenvolvido por Keynes. Em 1986 publicou um livro – “Stabilizing an Unstable Economy” – no qual fazia uma releitura da fragilidade das economias de mercado quando, no fim de um ciclo de expansão econômica, a euforia e a ambição acabam dominando as decisões dos agentes econômicos.
O livro de Minsky foi adotado por membros importantes do universo de Wall Street, como Paul McCulley da Pimco, quando ocorreu a crise financeira de 1998. McCulley chamou de momento Minsky o ponto do ciclo econômico em que os especuladores endividados são obrigados a vender em massa os seus ativos, para fazer frente às suas necessidades de liquidez. Nesse ponto, começa a liquidação de posições, mas nenhum comprador pode ser encontrado a preços tão elevados, o que leva a uma queda abrupta nos preços dos ativos e a uma acentuada redução da liquidez no mercado.
O momento Minsky normalmente ocorre depois de um longo período de prosperidade e de investimentos crescentes, o que incentiva o aumento da especulação usando dinheiro emprestado. Alguns, como McCulley, consideram o início da crise financeira de 2007-2010 como um momento Minsky. McCulley estabelece este momento em agosto de 2007, enquanto outros consideram que tenha sido um pouco antes, em junho de 2007, com a quebra da Bear Stearns.
Agora, dez anos depois da crise de 2008 que fez de Minsky um economista respeitado até pela comunidade financeira de Wall Street, voltamos a viver uma crise financeira que vai jogar o mundo novamente em uma possível depressão econômica. Mas, como sempre acontece quando se utiliza eventos históricos como referência para melhor conhecer o presente, é preciso analisar as condições de contorno atuais em relação às do passado. As economias de mercado são organismos que evoluem com o tempo e mudanças importantes podem ocorrer em um período de 10 anos. Quando olhamos a crise que estamos vivendo e a comparamos com o que ocorreu em 1997 e 1998 duas mudanças me chamam a atenção.
A primeira é que tanto em 1998 como em 2008 foram tensões típicas da super excitação de otimismo dos mercados que provocaram abrupta ruptura das cotações dos principais ativos e o mergulho na recessão. Não houve nenhum Cisne Negro externo para interromper o otimismo de todos. Desta vez, em 2020, apesar de já existirem as condições de excesso de otimismo nos Estados Unidos, foi o evento na saúde mundial provocado pelo coronavírus que provocou a crise de confiança e o pânico nos investidores.
A segunda é que pela primeira vez experimentamos um período de pânico de extensão mundial com o funcionamento pleno das chamadas mídias digitais e das redes sociais. Nesta nova configuração das relações entre habitantes do mundo todo, a disseminação de notícias verdadeiras e falsas se faz a uma velocidade incrível e sem o controle da verdade que sempre foi responsabilidade da mídia institucional.
Mas o fim desta crise está longe de ocorrer e muita água – ou melhor sangue – vai correr debaixo da ponte.
*Luiz Carlos Mendonça de Barros, engenheiro e economista, é presidente do Conselho da Foton Brasil. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações.