O conflito entre o novo e o velho está vivo e precisa ser resolvido dentro do sistema democrático que temos
A imprensa foi quase unânime na leitura que fez dos primeiros 100 dias do governo Bolsonaro usando, principalmente, as informações de uma exaustiva pesquisa de opinião pública realizada pela Datafolha. Este instituto adotou uma metodologia, já conhecida por nós, de comparar as informações obtidas na pesquisa de agora com as realizadas com presidentes anteriores ao atingir o centésimo dia de seus mandatos.
Em recente tweet ponderei que no caso do presidente Bolsonaro este tipo de comparação não me parece a mais adequada pelas condições de contorno de sua eleição em 2018 quando comparadas com as anteriores, E o que chamo de “condições de contorno diferentes” que tornariam tais comparações menos adequadas? Poderia citar inicialmente o fato de que Bolsonaro foi – até sua eleição – um político de pouca expressão e cuja experiência restringia-se a mandatos parlamentares no grupo chamado de baixo clero e sem nenhuma vivência de mandato mesmo no executivo municipal, ou estadual. Teria, portanto, mais dificuldades para chegar aos seus primeiros 100 dias de governo.
Se me restringisse a esta característica própria do novo presidente seria questionado quanto à experiência executiva de FHC e Lula antes de serem eleitos. Mas, replicaria eu, que estes dois ex-presidentes, apesar de sua falta de vivência no executivo, pertenciam a partidos com um longo e exitoso protagonismo na cena política brasileira. Por isto sempre estiveram participando de reflexões e mesmo decisões sobre temas nacionais e que fazem parte da agenda de um presidente eleito no Brasil. Características estas que não fazem parte do curriculum vitae de Bolsonaro.
Bolsonaro, mesmo em seu longo período no Congresso como membro do baixo clero, nunca esteve envolvido nas discussões das questões mais relevantes da agenda Brasil. Por outro lado, o partido pelo qual ele ganhou as eleições não tem história nem protagonismo pretérito na vida política brasileira e foi escolhido pelo então candidato justamente por isto. Ele não queria estar vinculado de nenhuma forma à velha política.
Mesmo ampliando com estes argumentos o campo da minha defesa contra a aplicação da metodologia Datafolha na avaliação dos primeiros 100 dias do governo Bolsonaro certamente não ganharia a aprovação da maioria dos leitores do Valor. Por isto lanço mão de um terceiro argumento: os resultados das eleições gerais realizadas no ano passado refletem um período de colapso do sistema político que prevaleceu, por mais de 30 anos, no Brasil. E uso a palavra colapso nos termos mais radicais como sendo: Estado daquilo que está desmoronando, do que está em crise ou prestes a acabar; ruína.
Mas sabemos, pela história de outros países, que o colapso de um sistema político só é inteiramente percebido pela sociedade depois de uma longa e penosa decadência. No caso da chamada Nova República, o início deste processo foi a combinação do desastre econômico criado pelos governos Lula -segundo mandato- e Dilma e a descoberta pela Lava-Jato das entranhas da corrupção que se estabeleceu na sociedade. Os testemunhos de acusados, mas principalmente dos delatores, acompanhados ao vivo e em cores na mídia, revelaram de forma crua a ação de empresários sem escrúpulos e um sistema de financiamento político que ultrapassou os limites tolerados em regimes democráticos.
Em uma sociedade massacrada pela mais longeva e intensa recessão de nossa história, com índices de desemprego e sub- emprego também nunca vistos, criou-se o clima necessário para que o regime político associado a esta situação entrasse em colapso com as denúncias de corrupção. E não poderíamos esperar outra reação dos brasileiros se não o comportamento que tiveram nas eleições com uma grande abstenção e a busca de alguém que não representasse o sistema político anterior.
Mas esta situação arrastou para a marginalidade política a quase totalidade dos partidos e lideranças do antigo regime. Todos pertenceriam ao que o candidato Bolsonaro passou a denunciar como sendo a Velha Política e que se contrapunha, sem maiores esclarecimentos, ao que seria a sua Nova Política. Apenas políticos e partidos anteriormente à margem do sistema existente – com exceção do PT que manteve praticamente intacta sua base histórica de apoio – passaram a ser vistos como merecedores de confiança do eleitor. Neste cenário é que o presidente Bolsonaro foi eleito, menos por suas qualidades e projetos e mais pelos defeitos apontados em outros candidatos, por pouco mais de um terço dos votos e com uma rejeição de quase 40% do eleitorado.
Este movimento dos eleitores trouxe ao poder em Brasília um presidente – e uma equipe de governo – sem a experiência passada para administrar um sistema político em transição e com um discurso radical contra os políticos catalogados como velhos. Mas nestes primeiros cem dias de seu governo ele está percebendo que o parlamento ainda tem uma proporção majoritária de políticos e partidos velhos e que governar sem um acordo com eles é praticamente impossível no Brasil.
Esta para mim é a grande marca desta primeira avaliação do governo: o conflito entre o novo e o velho ainda está vivo e o presidente terá que administrar um período de transição para que este conflito seja resolvido dentro do sistema democrático que temos em nosso país.
*Luiz Carlos Mendonça de Barros, engenheiro e economista, é presidente do Conselho da Foton Brasil. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações.