Luiz Carlos Azedo: Salomônica

Se a prisão de parlamentares precisa de aprovação do parlamento, por que as medidas cautelares não seriam também sujeitas a isso?
Foto: STF/Ascom
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Se a prisão de parlamentares precisa de aprovação do parlamento, por que as medidas cautelares não seriam também sujeitas a isso?

Terceiro rei de Israel, Salomão é um personagem bíblico citado como um mantra: “Tudo neste mundo tem seu tempo; cada coisa tem sua ocasião”. Por exemplo, tempo de espalhar pedras e tempo de ajuntá-las; tempo de rasgar e tempo de remendar. Segundo a Bíblia, Salomão assumiu o trono muito jovem e pediu ajuda a Deus, que lhe deu sabedoria e, sem que sequer pedisse, riqueza e glória. Governou por 40 anos, mas sua fama de sábio veio logo no começo do reinado, quando foi procurado por duas mulheres que brigavam.

Ambas moravam na mesma casa, com duas crianças recém- nascidas, uma das quais morreu. Uma acusava a outra de ter trocado a criança durante a madrugada. Diante da situação, Salomão chamou um soldado e mandou que cortassem o bebê vivo em dois, dando metade para cada mulher: “Não!”, gritou a mãe verdadeira. “Por favor, não matem o bebê. Deem-no a ela!”. Salomão, então, falou: “Não matem o menino! Deem-no à primeira mulher. Ela é a mãe dele. ” A verdadeira mãe amava tanto o bebê que estava disposta a dá-lo à outra mulher para que não fosse morto.

Por causa dessa passagem bíblica, a expressão “salomônica” é atribuída a decisões difíceis e contraditórias, como o voto decisivo da presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Cármem Lúcia, no julgamento de quarta-feira passada, que atribuiu ao Senado e à Câmara a palavra final sobre a aplicação a parlamentares de medidas cautelares previstas no Código de Processo Penal. O julgamento estava empatado. Os ministros Luís Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux, Édson Fachin (relator) e o decano da Corte, Celso de Mello, defendiam a plena aplicação das medidas, sem aval do Congresso. Alexandre de Moraes, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Marco Aurélio Mello sustentavam a tese de que somente a prisão em flagrante é constitucional.

A sessão começou pela manhã e avançou pela noite, o voto conciliador de Cármem Lucia acabou sendo o mais polêmico. Não foi à toa que a ministra foi questionada pelos pares e teve muita dificuldade para chegar à sentença final, o que somente conseguiu com ajuda de Celso de Mello. Em resumo, ela apoiou a aplicação das medidas cautelares previstas no Código de Processo Penal, mas não na Constituição, ou seja, parte do relatório do ministro Edson Fachin, mas endossou em parte os argumentos de Alexandre de Moraes e outros ministros, quanto à tese de que o Supremo deveria submeter suas decisões ao Congresso, quando impedissem o exercício do mandato popular.
Entretanto, a presidente do Supremo não considerou as medidas cautelares, como afastamento do mandato e recolhimento noturno, inconstitucionais.

Se a prisão de parlamentares precisa de aprovação do parlamento, por que as medidas cautelares não seriam também sujeitas a isso? Esse questionamento estava pondo em rota de colisão o Supremo e o Senado, o que poderia resultar numa grave crise institucional. Há toda uma discussão sobre o equilíbrio entre os poderes e o papel de “poder moderador”, que é reivindicado tanto pelo Senado como pelo Supremo. Há todo um debate teórico sobre isso, calcado nas experiências francesa e norte-americana, mas o pano de fundo da discussão é o feijão com arroz da política brasileira e o caso Aécio Neves (MG), presidente licenciado do PSDB. Na prática, o futuro imediato do ex-governador mineiro está nas mãos dos seus pares.

Os poderes
Tudo indica que o tempo de espalhar pedras da Operação Lava-Jato e de o Supremo rasgar a cortina de proteção do Congresso já passou, com a mudança no comando da procuradoria-geral da República, agora nas mãos de Raquel Dodge, e essa decisão do Supremo. Cármem Lúcia tenta recolher as pedras e remendar as relações entre os poderes. Com certeza, haverá uma grande reação na sociedade contra isso, mas faz parte do processo. O professor José Honório Rodrigues dizia que, no Império e na República, os poderes formaram sempre um círculo de ferro, concentrado nos conservadores e liberais moderados, e nos conservadores moderados, liberais e o grupo mineiro-paulista, respectivamente. Esse círculo se rompeu na proclamação da República (1889), na Revolução de 1930, na Revolta Constitucionalista (1932), no suicídio de Vargas (1954), na renúncia de Jânio Quadros (1961) e no golpe de 1964.

“Dentre os poderes, o Executivo sempre foi mais progressista e receptivo às aspirações populares; o Congresso, mais antirreformista e mais retardatário; o Judiciário esteve quase sempre a favor das forças dominantes”, destacou em Teses e Antíteses da História do Brasil. A Constituição de 1988 alterou essa relação, ao possibilitar um novo protagonismo do Judiciário. O velho professor dizia, porém, que a rigidez das instituições garantia a sobrevivência das elites políticas; em contrapartida, o divórcio entre o poder e a sociedade era a principal causa de instabilidade política, o que continua válido. Ainda bem que as eleições de 2018 estão logo ali.

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