Luiz Carlos Azedo: Os tempos sombrios

O Brasil está passando por um momento de radicalização política, em meio a um choque de narrativas nas quais a primeira vítima das “certezas” e “verdades” é a fraternidade.
Foto: Divulgação/Google
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O Brasil está passando por um momento de radicalização política, em meio a um choque de narrativas nas quais a primeira vítima das “certezas” e “verdades” é a fraternidade

Um dos ensaios do livro Homens em tempos sombrios (Companhia de Bolso), da filósofa judia-alemã Hanna Arendt, é dedicado ao poeta, dramaturgo, filósofo e crítico de arte alemão Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781) e discute a relação entre a verdade e a humanidade. Considerado um dos maiores representantes do Iluminismo alemão, Lessing é autor da peça Nathan, o sábio, de 1779, que se destaca pela defesa do livre pensamento e da tolerância religiosa, além da crítica ao antissemitismo.

À época, a peça foi proibida pela Igreja; mais tarde, o mesmo aconteceu sob o nazismo e, depois, no comunismo. A obra descreve o modo como o comerciante judeu Nathan, o sultão Saladin e um cavaleiro templário superaram as diferenças entre o Judaísmo, o Islamismo e o Cristianismo. Simultaneamente, aborda os temas da amizade, da tolerância, do relativismo divino e da necessidade de comunicação.

Filho de um pastor luterano, Lessing estudou latim e matemática em Kamens, sua cidade natal, e, depois, medicina, teologia, literatura e filosofia na Universidade de Leipzig, mas trocou tudo pelo teatro. Acabou mudando-se para Berlim, onde se tornou dramaturgo e crítico de arte. Entretanto, por causa de suas ideias avançadas, nunca foi aceito nos círculos da corte de Frederico II, o Grande, da Prússia, principalmente por causa de Voltaire, que então lá vivia e cuja dramaturgia criticou duramente.

Isolado, Lessing mudou-se para Breslau e, depois, Hamburgo, onde se tornou bibliotecário do duque Brunswick at Wolfenbüttel, o que lhe garantiu uma renda fixa, com a qual pode manter a família e quitar as suas dívidas. No seu tempo, a verdade única era a grande questão filosófica e religiosa, com a qual Lessing polemizava. Divertia-se com o fato de que, tão logo enunciada, a “verdade” imediatamente se transforma numa opinião entre muitas outras, que era contestada, reformulada e reduzida a um tema de discurso entre outros.

Com perdão pelo pleonasmo, nada mais verdadeiro em tempos de sociedade líquida e de choques de narrativas. Uma única verdade absoluta, se pudesse existir, seria a morte de todas as discussões. No seu ensaio sobre Lessing, Arendt estabelece a diferença entre as noções de possuir a verdade e estar certo, mas destaca que os dois pontos de vista têm algo em comum: os que assumem um ou outro geralmente não estão preparados, em caso de conflito, para sacrificar seu ponto de vista à humanidade ou à amizade.”

Humanismo
Chegamos ao que mais nos interessa. Nenhuma avaliação da natureza do islamismo, do judaísmo ou do cristianismo, segundo a Arendt, teria impedido Lessing de travar uma amizade com um mulçumano convicto, um judeu piedoso ou um cristão crente. “Qualquer doutrina que, de princípio, barrasse a possibilidade de amizade entre seres humanos seria rejeitada por sua consciência livre e certeira. Teria imediatamente tomado o lado humano e não ligaria para a discussão culta ou inculta em cada parte”, destaca. A humanidade de Lessing pode ser resumida numa única frase: “Que cada um diga o que acha que é verdade, e que a própria verdade seja confiada a Deus!”.

Nos “tempos sombrios” a que se refere Hanna Arendt, o pano de fundo são a radicalização e o totalitarismo, em contraposição à amizade e ao humanismo. Há o trauma alemão decorrente do apoio ao nazismo e à guerra, um dos temas recorrentes da filósofa, e também o trauma do que denominou de “emigração interna” dos judeus, antes mesmo de Hitler ter chegado ao poder: a fuga do mundo para a ocultação; da vida pública, para o anonimato. “A fuga do mundo em tempos sombrios de impotência sempre pode ser justificada, na medida em que não se ignore a realidade, mas é constantemente reconhecida como algo a ser evitado”, afirma Arendt em seu ensaio.

Às vésperas de Hitler chegar ao poder, a força do escapismo brotava da perseguição aos judeus fugitivos na forma de resistência íntima, silenciosa e individual. “Mas há uma grande diferença entre força e poder. O poder surge apenas onde as pessoas agem em conjunto, mas não onde as pessoas se fortalecem como indivíduos”, adverte. O Brasil está passando por um momento sombrio, de radicalização política decorrente de projetos autoritários, em meio a um choque de narrativas nas quais a primeira vítima das “certezas” e “verdades” é a fraternidade, o humanismo.

O escapismo em relação ao processo eleitoral é um fenômeno real, ainda mais porque o sistema político descolou-se da maioria da sociedade. Entretanto, não resolve os problemas da política e da economia, muito menos da disseminação do ódio e da exacerbação de inimizades, inclusive em ambientes familiares. Faz muito sentido a advertência de Hanna Arendt no ensaio sobre Lessing: “Como era tentador, por exemplo, simplesmente ignorar o falastrão insuportavelmente estúpido dos nazistas. Mas, por mais sedutor que possa ser, render-se a tais tentações e isolar-se em sua própria psique, o resultado será sempre uma perda do humano com a deserção da realidade”.

http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-os-tempos-sombrios/

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