Um balanço da atuação do presidente Bolsonaro, em dois anos e meio, mostra uma fuga permanente da realidade, a aversão aos verdadeiros problemas da sociedade
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense
Psicólogos têm uma espécie de protocolo para identificar um mitômano: o sujeito não sente culpa ou medo do risco de ser descoberto; suas histórias são exageradas; inventa sem motivo aparente ou ganho; aparece sempre como herói ou vítima; repete as mentiras com versões diferentes. Tudo para fazer as pessoas acreditarem na imagem que procura construir para si próprio. Não é à toa que a mitomania também é chamada de “pseudologia fantástica” ou “mentira patológica” — um transtorno psicológico, a tendência compulsiva por mentir sem que exista, necessariamente, demência.
O mentiroso tradicional usa a imaginação para ter proveito ou vantagem em alguma situação, o que não é incomum na política. Já o mitômano mente com o objetivo de disfarçar a sua própria realidade, ou seja, para se sentir confortável, se tornar mais interessante ou agradar o grupo social do qual faz parte. Qualquer semelhança com o presidente Jair Bolsonaro, que se autodenomina de “mito”, não é mera coincidência.
Na sexta-feira passada, bateu todos os recordes de mentiras sobre as eleições no Brasil, em confronto aberto com o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), na tentativa de criar um ambiente de tumulto e questionamento dos resultados das eleições de 2022, caso não seja eleito.
Suas mentiras desenham um projeto político reacionário, que coleciona atitudes, declarações e fatos para emular a formação de uma falange política armada no país. Somente na semana passada, tivemos a surpresa de um encontro do nosso presidente da República com uma parlamentar alemã de notórias ligações neonazistas, empenhada em articular um movimento de extrema-direita de caráter internacional.
Uma alegoria do rumo em que vamos foi o lastimável incêndio no prédio da Cinemateca Brasileira, em São Paulo, por falta de recursos para sua manutenção. É uma síntese da política anticultural do governo, empenhado em destruir o que foi construído por gerações de artistas e intelectuais brasileiros, às vésperas do Centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, um marco da cultura nacional.
Um balanço da atuação do presidente da República nesses dois anos e meio de governo mostra uma fuga permanente da realidade e a aversão aos verdadeiros problemas da sociedade. Bolsonaro nunca fez parte da elite política do país e deixou a carreira militar por indisciplina. Era um parlamentar do “baixo clero” da Câmara, mas foi eleito com 57,7 milhões de votos para conduzir a “grande política” do país. Os rumos da nação dependem de suas decisões. É por isso que o país vai mal. Seu negativismo é responsável pelo fracasso do governo no combate à pandemia de covid-19, que já registra mais de 555 mil mortos. Agora, não consegue traduzir em ações positivas a energia que a sociedade revela na retomada de atividades econômicas.
Contágio
Segundo a Secretaria de Política Econômica do Ministério da Economia (SPE/ME), o Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil deve crescer 5,3% em 2021. A estimativa anterior era de alta de 3,5%. Isso não se traduz em ganhos sociais efetivos. A taxa de desemprego continua no patamar de 14,6%, com 14,8 milhões de pessoas procurando emprego, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) Contínua. O Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) está projetado para 5,90% em 2021. O Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC) deve subir 6,20% este ano. A inflação pelo IPCA acumulada em 12 meses é de 8,4%. Para fechar o ano em 5,9%, é preciso um “tour de force” do governo para conter gastos, gerar empregos e transferir rendas. O que mantém a atividade econômica “por baixo” é a grande massa de brasileiros na informalidade, em torno de 34,7 milhões.
Houve um apagão de empregos formais. Entretanto, é mais fácil mudar a metodologia do que enfrentar a realidade. O ministro da Economia, Paulo Guedes, errático, perdeu “o tempo da bola”, como diria o vice Hamilton Mourão. Desperdiçou a oportunidade das reformas. Agora, contesta os números do IBGE, novamente sob ataque, como o Inpe esteve, por exemplo, no caso do desmatamento e das queimadas. O Cadastro Geral de Empregados e Desempregados registra a criação de 1,5 milhão de vagas com carteira assinada no primeiro semestre do ano, dos quais 300 mil somente em junho. Guedes alega que foram 2,5 milhões desde a pandemia. Segundo o ministro, estão sendo criados 1 milhão de empregos a cada três meses e meio. Só falta avisar aos desempregados. A mitomania pode ser contagiosa.