Luiz Carlos Azedo: Emergência e fricção

“Bolsonaro agrega à epidemia de coronavírus um ambiente político de conflitos desnecessários e estresse institucional, com crises criadas dentro do governo”.
Foto: Marcos Corrêa/PR
Foto: Marcos Corrêa/PR

“Bolsonaro agrega à epidemia de coronavírus um ambiente político de conflitos desnecessários e estresse institucional, com crises criadas dentro do governo”

Nunca vivemos, desde a gripe espanhola de 1918, uma emergência sanitária como a que o mundo atravessa. O problema do novo coronavírus é que ainda há mais dúvidas do que certezas em relação à doença, exceto que se propaga muito rapidamente, é letal para um contingente significativo de suas vítimas e não se tem previsão de quando e se teremos uma vacina que o previna, nem um remédio realmente eficaz para combatê-lo. O que tem sido mais eficiente no combate à epidemia é o distanciamento social e um sistema público de saúde robusto, para tratar os casos graves e salvar vidas.

Ninguém estava preparado para enfrentar o coronavírus, essa é a verdade. Mas talvez nenhum outro governante no mundo tenha revelado tanto despreparo para lidar com a situaçao como o presidente Jair Bolsonaro. Até hoje, não se deu conta de que a volta à normalidade é impossível enquanto o vírus estiver se propagando numa velocidade maior do que a capacidade de atender as pessoas que necessitam de assistência médica, pois isso significa pôr em colapso o sistema de saúde e, consequentemente, toda a economia.

Os números revelados até ontem são eloquentes: 7.321 mortes e 107.780 casos confirmados, dos quais 32.187 em São Paulo, com 2.654 mortes. Com a subnotificação, calcula-se que o número de pessoas contaminadas no país pode se aproximar de 1 milhão. Uma conta simples, usando como base o índice otimista de que 3% necessitarão de internação, projeta uma demanda próxima de 30 mil vagas em leitos hospitalares nos próximos 30 dias. Essa é a bucha na mão de governadores e prefeitos de todo o país. Em Manaus, Recife, Fortaleza e Rio de Janeiro, já há gente morrendo por falta de vagas nas UTIs, o que pode se reproduzir nos demais estados, a começar por Santa Catarina, a bola da vez.

É inequívoco que o país está sofrendo as consequências do relaxamento da política de distanciamento social, que é estimulado sistematicamente pelo presidente Jair Bolsonaro, com eco no desespero da parcela da população que perdeu suas fontes de renda. Com o agravante de que os R$ 600 aprovados pelo Congresso ainda não chegaram à parcela considerável dos que têm direito ao benefício, por dificuldades operacionais da Caixa Econômica Federal, que centralizou, desnecessariamente, o cadastramento dos beneficiados e a distribuição dos recursos. O desespero nas filas das agências da Caixa revela a outra face do drama humano que estamos vivendo.

Entretanto, o custo econômico do colapso total do sistema de saúde, provocado pela volta atabalhoada às atividades do comércio e dos serviços, seria muito maior do que o da atual política de distanciamento social. Essa dimensão do problema o presidente Bolsonaro não quer aceitar, assim como a bolha de apoiadores fanatizados com a qual interage. Ninguém sabe como sairemos dessa crise. Com certeza, porém, teríamos perspectivas mais otimistas se não houvesse tanta fricção no combate à epidemia, principalmente política.

Protagonismo

Quem mais protagoniza essa fricção é o presidente da República, que parece sabotar os próprios esforços do governo para combater a epidemia e criar um ambiente de cooperação entre os Poderes e demais entes federados, para mitigar seus efeitos econômicos e sociais. Até mesmo as relações com os parceiros internacionais, dos quais dependemos para obter mais equipamentos e insumos, notadamente, a China, sofre os efeitos dessa fricção. Na cena internacional, o Brasil voltou a ser um país exótico e, agora, politicamente isolado. A construção de gerações de diplomatas do Itamaraty está sendo implodida pelo chanceler Ernesto Araújo.

Essa fricção agrega à epidemia de coronavírus um ambiente político de conflitos desnecessários e estresse institucional, deteriorado por crises criadas dentro do próprio governo, pelo presidente da República. Ontem, Bolsonaro nomeou a toque de caixa o novo diretor da Polícia Federal, delegado Rolando Alexandre de Souza, que decidiu trocar a chefia da superintendência do Rio de Janeiro. Carlos Henrique Oliveira, atual comandante do estado fluminense, foi convidado para ser o diretor executivo da Polícia Federal, deixando a Superintendência do Rio, cuja direção Bolsonaro sempre quis indicar. Por sua vez, o procurador-geral da República, Augusto Aras, pediu ao Supremo Tribunal Federal (STF) que autorize novas diligências no inquérito que apura suposta interferência política do presidente Jair Bolsonaro na Polícia Federal.

Relator do caso, cabe ao ministro Celso de Mello autorizar a oitiva de pessoas citadas por Moro em depoimento; a recuperação de áudio ou vídeo que comprove a suposta tentativa de interferência; e a perícia nas informações obtidas a partir do celular de Moro. Dez pessoas do alto escalão do governo serão ouvidas, entre as quais os ministros Luiz Eduardo Ramos (Governo); Augusto Heleno (GSI), Braga Netto (Casa Civil); a deputada Carla Zambelli (PSL-SP); o ex-diretor-geral da Polícia Federal Maurício Valeixo; e os delegados da PF Ricardo Saadi, Carlos Henrique de Oliveira Sousa, Alexandre Saraiva, Rodrigo Teixeira e Alexandre Ramagem Rodrigues. O que se investiga? “O eventual patrocínio, direto ou indireto, de interesses privados do Presidente da República perante o Departamento de Polícia Federal, visando ao provimento de cargos em comissão e a exoneração de seus ocupantes”. Mais fricção à vista.

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