Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense
No começo do século passado, por uma série de razões, houve uma grande revolta popular no Rio de Janeiro contra a vacinação da população. O episódio, porém, é um marco contra a ignorância e o negacionismo da ciência. Àquela época, a antiga capital era uma cidade insalubre, em péssimas condições de saúde pública, na qual proliferavam doenças contagiosas: tuberculose, peste bubônica, febre amarela, varíola, malária, tifo, cólera etc. O presidente Rodrigues Alves resolveu realizar uma série de reformas urbanas para melhorar as condições de vida da então capital, a cargo do engenheiro Pereira Passo, que alargou ruas e removeu cortiços, desalojando a população; o mais miserável. Diretor-geral de Saúde Pública desde 1903, o médico Oswaldo Cruz assumiu o cargo com a missão de implementar o saneamento público e erradicar a febre amarela, a peste bubônica e a varíola, principalmente.
Com essa intenção, em 1904, o governo propôs a obrigatoriedade da vacinação, lei aprovada em 31 de outubro, apesar dos protestos, inclusive um abaixo-assinado com 18 mil assinaturas, muito para aquela época. A lei exigia comprovantes de vacinação para realizar matrículas nas escolas, assim como para obtenção de empregos, viagens, hospedagens e casamentos. Previa multas para quem não se vacinasse. O povo se revoltou, estimulado pelos políticos de oposição. A confusão começou no Largo do São Francisco e se espalhou de Copacabana ao Engenho Novo, com quebra-quebras, tiros, barricadas. O saldo foi de 945 pessoas na Ilha de Cobras, 30 mortos, 110 feridos e 461 deportações para o estado do Acre. Historiadores avaliam que a política higienista e a forma autoritária como foi imposta a vacinação causaram a revolta, além do fato de que a vacinação de mulheres era vista como uma ameaça à honra machista.
Quase 120 anos depois, a vacinação em massa no Brasil é uma política de saúde pública muito bem-sucedida. É resultado de muitas campanhas de vacinação, entre as quais se destacam: (1) a campanha contra a meningite na década de 1970, quando uma epidemia matou milhares de crianças e o então regime militar tentou escondê-la; e (2) a campanha contra a poliomielite, que praticamente erradicou a paralisia infantil, porém, na década de 1980, foi objeto de uma grande polêmica entre o general João Batista Figueiredo e o criador da vacina, Albert Sabin, por causa da subnotificação dos casos de poliomielite. Ontem, o DataFolha divulgou pesquisa de opinião amplamente favorável à vacinação contra a covid-19, inclusive das crianças. É uma vitória do Sistema Único de Saúde (SUS) e do nosso modelo federativo, que neutralizou a desastrada política do Ministério da Saúde, graças à atuação de governadores e prefeitos. Estão com vacinação completa 75% da população.
Donas de casa
Os números também são acachapantes contra o negacionismo do presidente Jair Bolsonaro, que até hoje não se vacinou e não pretende imunizar a filha de 11 anos: 81% dos entrevistados são a favor da exigência do “passaporte de vacina” para que seja liberada a entrada em locais fechados como bares, restaurantes e órgãos públicos, entre outros. Apenas 18% são contra a exigência do comprovante, e 1% não soube responder. Os mais favoráveis ao passaporte são mulheres (87%), pessoas com mais de 60 anos (87%), com ensino fundamental completo (86%) e aqueles que ganham até dois salários mínimos por mês (85%). Os maiores grupos negacionistas estão estre os homens (24%), pessoas de 25 a 34 anos (22%) e aqueles que têm renda mensal de mais de 10 salários mínimos (28%). No Sudeste, 84% são favoráveis à medida; no Sul, 75%. As donas de casa (90%) são as mais entusiastas da vacinação; entre as empresárias, 60%.
Como a oposição a Rodrigues Alves e Oswaldo Cruz, Bolsonaro perdeu a guerra da vacina. Para 59% da população, sabotou a imunização. Esse resultado, obviamente, terá sérias consequências eleitorais, mesmo com a resiliência dos setores que apoiam tudo o que Bolsonaro propõe, inclusive quando afronta o “bom senso”. Nesse aspecto, a vacinação deve ser objeto de uma reflexão política mais ampla, que nos remete ao comportamento da maioria da população. De certo modo, na eleição de 2018, Bolsonaro explorou com muito êxito o “senso comum” da maioria dos eleitores em relação à crise ética que atingia em cheio o nosso sistema político, sobretudo os partidos.
Há uma grande diferença, porém, entre “senso comum” e “bom senso”. O primeiro é uma postura passiva e acomodada, que segue critérios, comportamentos e modos de agir tradicionais na sociedade. Bolsonaro soube usá-lo com maestria, principalmente nos temas relacionados à mudança de costumes e à defesa da família unicelular patriarcal. O “bom senso”, ao contrário, leva ao reposicionamento crítico, porque resulta de certa sabedoria popular e de uma compreensão da realidade tal como ela é, como o das donas de casa ouvidas na pesquisa. Não resulta de conclusões de caráter ideológico, por exemplo. Quando confrontou o bom senso da sociedade, Bolsonaro perdeu a guerra.