Brasil não está em um túnel, onde há luz no final. No ritmo de 2017, país alcançará fundo do poço
Antevisão do Caos
Kaos, para os gregos, era a desordem total. Era o cenário anárquico em que tudo acontecia e nada fazia sentido. Um fato não era decorrência de outro, nem gerado por ele. Daí derivou o nosso caos, mas na acepção que temos para a palavra usada para delimitar um mundo onde ainda pode haver esperança e o quinto dos infernos, fatos podem ser gerados a partir de outros. Juntos, sucessivos, criam uma cadeia de acontecimentos destinada a nos lançar num horizonte sombrio. Enfim, num futuro caótico.
Brasil, 2017: é o caos, camaradas.
A fragmentação da cobertura do noticiário político e econômico originado em Brasília não edita, não cola lado a lado, as fotografias das más notícias sobrepostas diariamente. Sendo assim, bate-nos diariamente a sensação de que um dia pode sempre ser pior do que o outro, mas induz-nos a crer na existência de uma luz no fim do túnel.
Forçoso alertar que não estamos num túnel. Túneis seguem em planos horizontais. Estamos num fosso. Fossos são verticais e o empuxo da gravidade faz cair até o fundo. Arrisco dizer que lá no rés-do-chão, caros leitores, não puseram mola alguma capaz de nos alçar novos voos. Há ali, isso sim, um alçapão e nele a dobradiça enverga para fora. Do lado de lá, o vácuo: um buraco negro. Brasil, 2017.
Onde venderam estabilidade e equilíbrio, hoje a realidade é deficit sobre deficit. Especula-se, agora, que em 2020 estanque a sangria dos cofres públicos por onde escorrem mais despesas que receitas. Onde tentaram empurrar uma reforma estabilizadora da Previdência Social, tornando isonômicos os ganhos futuros, sapeca-se mal ajambrada microrreforma em que a pedra de toque é exclusivamente a necessária fixação de idade mínima para a concessão de benefícios –mas que conserva intocáveis privilégios de militares, de funcionários públicos com altos salários e sobretudo não toca na indecente falta de mecanismos de cobrança da inadimplência previdenciária por parte de empresas.
Cantaram aos 4 ventos uma reforma do ensino médio e executaram-na a fórceps, cancelando o debate legislativo, por meio de medida provisória. As mudanças não virão: falta recursos à rede pública para as readaptações curriculares exigidas na MP. Foram cancelados programas bem sucedidos que integravam a incipiente rede brasileira de proteção social. Nos dois últimos anos quase 5 milhões de famílias brasileiras regressaram para o lado da miséria do muro que separa remediados, pobres e indigentes. O governo revogou R$ 10 reais no reajuste do salário mínimo para 2018. Fez isso ao mesmo tempo que confirmou despesas de R$ 13,4 bilhões em liberação de emendas parlamentares para quem votou contra a aceitação de abertura de processo no Supremo Tribunal Federal destinado a apurar denúncia de corrupção transformando Michel Temer em réu. Além do quê, o Palácio do Planalto acenou com uma reserva de mais R$ 1 bilhão a serem liberados em emendas de quem seguir fiel às suas linhas nos embates futuros.
Havia um fio de esperança na reforma política, que afinal podia mudar para melhor as regras vigentes para as eleições futuras. Desfiaram o fio, convertido em novelo de desesperança. Se vingar o “distritão” teremos a partir de 2019 um Congresso radicalmente pior em relação ao atual –o mais lastimável desde 1823. Caso aprovem de afogadilho um parlamentarismo meia-sola, imposto para tirar poderes do presidente da República concedendo-o a um Parlamento eleito sob suspeição e integrado por lideranças de partidos políticos estruturados sob máquinas mafiosas, o ciclo de dramas sucessivos se perpetuará. Não à toa, o grupo que ocupa o Planalto desde a deposição de Dilma Rousseff, em 2016, defende justamente o nefasto “distritão” e esse parlamentarismo-de-afogadilho.
Em que pese tudo o que foi dito até aqui, essencial fazer uma ressalva ao sistema de financiamento de campanhas eleitorais. Democracia dá trabalho e custa dinheiro. É o preço necessário a pagar por viver sob regras de civilidade. É claro que a forma de compor o fundo de R$ 3,6 bilhões para financiar campanhas e partidos, e mesmo a origem e extensão desse financiamento, podem e devem ser estudados à exaustão. A eliminação dos programas partidários semestrais e conversão da renúncia fiscal derivada deles em “depósito de criação” do fundo não é má ideia. Daí podem sair 50% das verbas do fundo. O cancelamento de emendas parlamentares individuais é outra boa ideia –o que renderia mais uns 30% do fundo. Por fim, a imposição de duras regras de limitação de gastos com ferramentas de controle dessas limitações e punições severas –até com perda de mandatos e impugnação de candidatos que desobedecerem aos limites– tem de ser levado em conta. Não há nem almoço, nem sistema democrático grátis.
Ao aceitar pagar o preço da máquina política que estrutura a sociedade, concede-lhe organicidade e constrói o mecanismo de freios e contrapesos por meio do qual os poderes republicanos e as instituições se autorregulam, faz-se urgente ampliar também as ferramentas de transparência por meio das quais os cidadãos controlam o funcionamento da democracia. Essa parte do debate ainda não veio à luz no Congresso, nem na mídia tradicional. Tem de vir.
Resta-nos pouco tempo para deter a cadência do Brasil no fosso cujo fim ainda não vislumbramos. A gravidade nos atrai para o buraco negro –e não se sabe o que há por trás das nebulosas atrás do alçapão. A desesperança nos espreita. Quando o cidadão médio brasileiro costurar as fotografias miseráveis que teimam lembrá-lo diariamente e sistematicamente de nossas tragédias cotidianas ele terá em mãos um painel com imagem desesperadora: o caos.
* Luís Costa Pinto, 48 anos, é jornalista. Trabalhou em publicações como Veja, Folha e O Globo. Teve livros e reportagens premiadas –por exemplo, “Pedro Collor conta tudo”. É sócio da consultoria Idéias, Fatos e Texto.