Muitas vidas teriam sido salvas se as autoridades tivessem ouvido mais os doentes, os profissionais de saúde e aqueles que trabalham em serviços essenciais
O ano de 2020 foi violento. Da porta para dentro de casa, um liquidificador de angústias, ansiedades, incertezas, reflexões profundas sobre valores e prioridades. Da porta para fora, toda sorte de maluquices, ataques à ciência, à democracia e às liberdades, desorganização total, mortes em números de zona de guerra.
Não cabe aqui nem minimizar nem varrer para debaixo do tapete a maior crise sanitária da história. Vivemos o mais doloroso evento para a humanidade desde a II Guerra no ano que passou. Isso fica ainda mais especialmente grave neste momento em que os números de casos e mortes voltam a se acelerar no Brasil.
Tenhamos consciência de que a vacinação, quando finalmente chegar, não nos fará esquecer tanto sofrimento. O ano de 2020 foi também de aprendizados e exercícios valiosos. Fez frutificar a solidariedade e multiplicar as redes de apoio. Reforçou a fé da sociedade na cooperação humana e na democracia. Mostrou a importância do Estado, na forma do SUS e na competência dos profissionais da saúde. Revelou a excelência de nossos cientistas e pesquisadores. Confirmou a capacidade das pessoas e das empresas de se desdobrarem para tocar a vida adiante, com engenho e determinação.
Essas lições igualmente vão ficar para sempre. Tenhamos isso em mente. Em 2020, o planeta foi forçado a parar. Em 2021, precisaremos, de algum jeito, forçá-lo a voltar a girar. Tal oportunidade é valiosa demais para aproveitá-la com os mesmos pensamentos, as mesmas idiossincrasias, as mesmas atitudes. Não podemos mudar o nosso passado, mas somos livres para escolher o nosso futuro.
Tenho conversado com muitos pensadores atuais, pessoas capazes de iluminar o pós-pandemia, e deles tirei sugestões para 2021, que vou resumi-las em três ensinamentos-convites que gostaria de compartilhar aqui.
O primeiro desses ensinamentos-convites é o de escutar. Escutar quem não tem sido ouvido. Escutar quem estudou. Escutar quem pensa diferente de você.
Minha carreira de comunicador foi construída prestando atenção no que os outros têm a dizer, em suas histórias, em suas dificuldades, sacrifícios e lições de vida. Nestes vinte anos rodando pelos quatro cantos do Brasil, em razão do meu trabalho na TV, tomei o pulso da realidade de um país potente, mas ainda vergonhosamente desigual. Aprendi muito com a nossa gente e continuo a aprender. Nosso povo tem muito a ensinar — sobretudo a quem se acha dono da verdade. Apurar os ouvidos é transformador. Se você escutar de verdade, não vai ter como ignorar os problemas que existem nem as propostas mais robustas e consequentes que surgem para enfrentá-los. Leva a gente a perceber que a realidade nada tem de binária.
Voltemos à pandemia. Era a chance de o poder público escutar com atenção os doentes e suas famílias. De ouvir os profissionais de saúde, os cientistas e todos aqueles que trabalham em serviços essenciais. Era hora de focar em quem foi mais impactado pela crise, em quem mais colaborou para solucioná-la. Muitas vidas teriam sido salvas se nossas autoridades tivessem ouvido mais essas pessoas.
Agora tomemos a questão da Amazônia. Se é fundamental escutar os alertas urgentes e os registros aflitivos da ciência e da meteorologia, também é importante ouvir as necessidades e privações das pessoas que vivem na região e de lá tiram o seu sustento. Qualquer programa de bioeconomia só será realmente sustentável na região das florestas quando houver um entendimento entre diferentes pontos de vista — ou seja, se for feito um encontro de ideias entre ambientalistas, produtores rurais e povos tradicionais, sem descartar ninguém que aja no marco da lei.
Então o segundo ensinamento-convite que proponho é o de juntar as pessoas, reunir as melhores ideias e buscar consensos. Tem muita gente decente no Brasil com vontade genuína de contribuir para fazer um país melhor. Uns dirão que isso é utópico, que as lutas (de classes?) do dia a dia jamais permitirão convergências. Conversa fiada — tão conveniente àqueles, aliás, que prosperam justamente com o imobilismo.
Exemplos não faltam de políticas públicas pactuadas e executadas a várias mãos, do Plano Real ao Bolsa Família, do SUS à Lei Maria da Penha. Em 2019, bem antes da pandemia, eu defendi num seminário no centro financeiro de São Paulo a urgência de o Brasil atacar a nossa abissal desigualdade socioeconômica. Tinham me dito que a plateia farialimer torceria o nariz para a defesa de um programa de renda mínima. Pois aconteceu o contrário. Na vida, os bons exemplos arrastam — e, no trato da questão pública, precisa ser assim também.
O terceiro convite para 2021 nasce dessa disciplina de escutar e de buscar entendimentos. É o imperativo de agir. Temos de tirar do papel as boas ideias. A curiosidade somada à iniciativa e à capacidade de execução pode mover montanhas. Numa conversa recente, a historiadora Anne Applebaum fez para mim a defesa de um reagrupamento político e da instalação de uma contranarrativa com o objetivo de deter os extremos antidemocráticos. Um chamado que considero irresistível e que conta com ventos a favor. Amém!
Nas últimas eleições municipais, as capitais e as maiores cidades rejeitaram inapelavelmente a polarização política. E agora na Câmara desponta a frente multipartidária mais ampla das últimas décadas. É gente diferente unida por um mesmo propósito: nada mais poderoso.
Neste momento tenso da história do Brasil, cheio de instabilidades, é normal que especulações e interpretações equivocadas apareçam por todos os lados. Existe uma vontade pessoal minha de atuar na construção de um futuro mais próspero e justo para a nossa sociedade. Essa vontade já é bastante notória. Venho procurando exercê-la de maneira constante e intensa por meio do diálogo, do mapeamento e da divulgação de boas práticas. Todos os meus passos em 2020 foram dados à luz do dia, sempre em caráter apartidário e pessoal. Divulguei informações sobre a pandemia com responsabilidade e frequência na TV e nas minhas redes sociais — mais de 30 milhões de pessoas impactadas semanalmente.
Contribuí para erguer pontes entre a iniciativa privada e comunidades desassistidas — da distribuição porta a porta de álcool em gel e kits de higiene até cestas básicas.
Participei do grupo de criação da União Rio, de inúmeras iniciativas com a Central Única das Favelas, procurando assim auxiliar financeiramente quem mais sofreu com os efeitos da pandemia na saúde e na economia.
Abri uma escuta permanente para aprender, apoiar e viabilizar iniciativas inclusivas e antirracistas — de um piloto de distribuição de renda não bancarizada em Alagoas à oferta de um intensivo digital e gratuito para inscritos do Enem no Rio Grande do Sul.
Tentei também contribuir dando protagonismo e reconhecendo vozes das periferias e do Brasil profundo, as quais conheço bem, presto atenção, ouço e com quem apreendo há mais de duas décadas viajando pelo país.
Puxei para o debate público brasileiro mais de uma dúzia de pensadores internacionais que, de alguma forma, podem inspirar nossos caminhos pós-Covid — de economistas que estudam a desigualdade, como Esther Duflo e Thomas Piketty, a referências da tecnologia e da inclusão digital, como Nandan Nilekani e Peter Diamandis.
Como cidadão, tento contribuir com meu país até onde minha voz alcança. Consciente da violência, dor e desfuncionalidade do ano que passou, concluí que preciso ir além em 2021. E quero chamar mais gente para avançar: escutando, pactuando e agindo.
Numa de suas tantas letras maravilhosas, um dia Caetano Veloso escreveu que “coragem grande é poder dizer sim”. A gente precisa de um país mais eficiente e afetivo, em que as pessoas tenham o direito de sonhar e as oportunidades não sejam determinadas pela cor da pele ou pelo CEP de nascimento. Uma nação com mais formaturas e menos funerais.
Temos de arregaçar as mangas das nossas camisas, pisar firme no chão da realidade e elaborar um projeto de nação que faça o Brasil liderar agendas globais.
É urgente trabalhar para ser a maior potência agroindustrial sustentável do planeta. Uma economia verde admirada, capaz de produzir e preservar, mas também de extinguir a miséria e combater com rigor as nossas enormes desigualdades.
Para isso, nós teremos de nos mexer, de unir favela e asfalto, campo e cidade, conectando Brasília ao mundo. Tal desafio só será possível se nossas lideranças reconhecerem a necessidade de fazer concessões em nome do bem comum. Pois nada acontecerá por geração espontânea.
Somos muitos. Podemos muito. Aqui estão algumas sugestões para juntos construirmos o futuro próximo do Brasil. Feliz 2021!
*Luciano Huck é apresentador de televisão e empresário
Publicado em VEJA de 13 de janeiro de 2021, edição nº 2720