Liderança do ‘defensor dos ricos’ é atribuída às aspirações das classes médias emergentes
Vivemos uma conjuntura crítica, quem não sabe? Em alguns aspectos, sem paralelo na nossa História ou na trajetória de outras democracias jovens, menos ainda nas democracias do Atlântico Norte. Mas podem-se traçar paralelos com a maioria delas. A razão é que quase todas passam por transformações que podem genuinamente ser caracterizadas como deslocamentos de placas tectônicas. Compartilham um grau de polarização inédito em relação à História (recente) de cada uma delas.
Mais intrigante ainda, em quase todas se registra a dominância da política sobre a economia. Pois o que a literatura jornalística analisa como “crise da democracia” ou “o risco de regressão autoritária” inclui tanto casos de prosperidade quanto de crise econômica. Exemplos: o estilo divisionista de Trump, mesmo com pleno emprego; um Brexit problemático, sem crise; a regressão autoritária na Turquia de Erdogan ganhou impulso com altas taxas de crescimento. É o caso também de Orbán, na Hungria, e Moraviecki, na Polônia – cujo “sonho é (re)cristianizar a Europa”. De fato, não é só a economia, idiota.
Analistas políticos selecionam uma ou outra desse rico menu de opções sombrias focalizando o risco de uma regressão autoritária, com base na ideia de uma “guerra cultural”, entre valores opostos. O problema existe, mas essa noção não faz jus à dominância da política, tampouco às características distintivas da nossa conjuntura. E essa é uma falta grave para os que querem situar-se no território da oposição democrática. Como lembrou Gabeira neste espaço (19/10), o horizonte de alianças políticas para quem defende o meio ambiente, direitos humanos e os das minorias se estreita, mas está longe de se fechar. Concordo também com sua caracterização da cena eleitoral, “talvez mais reveladora do Brasil que as outras”, desde que se a mire, como ele, com olhos de ver.
A ênfase dominante na dimensão cultural leva a crer que as inclinações autoritárias da sociedade, antes submersas, vieram à tona de repente – ao contrário do que registram os índices de aderência à democracia, os mais altos desde 1989 conforme o Datafolha. Pior, obscurece a resiliência do ethos democrático (e das instituições), apesar da sucessão de traumas, a Lava Jato, o impeachment, a falência do sistema partidário. Ao mesmo tempo, o eleitor nunca esteve tão bem servido de informações e de análises doutas: com pesquisas de opinião, de alta qualidade, cujo efeito multiplicador a mídia e as redes repercutem em escala ampliada.
Se é assim, como situar a “maré conservadora”? Em primeiro lugar, mirando as bases sociais da política, como ensina a teoria política. Quer dizer, mirando os critérios de legitimação por meio dos quais a sociedade valida o exercício do poder por quem o exerce. (Nenhum governo autoritário se impõe só pela força.) Esses critérios mudaram e não foram internalizados pelos principais players. A nossa é uma crise de legitimação política que, superposta à crise do sistema partidário, adquiriu os contornos ameaçadores de crise de autoridade – mais aguda para os do andar de baixo. É assim que explico o sentimento anti-PT. Menos do que uma rejeição do ethos igualitário – afinal, graças a ele o partido foi eleito e governou juntamente com “as elites” -, reflete a inoperância dos seus cálculos políticos e da reiteração de seus velhos automatismos. Quer dizer, a postura “nós contra eles”, a aposta preferencial em sua hegemonia, a contestação do sistema de Justiça – e uma agenda econômica do tipo Dilma 3.
Mas afinal, em que mudaram os critérios de legitimação política? Em que ajudam a entender a conjuntura atual? Uma de suas características distintivas – este é o segundo aspecto – consiste no fato de que a nossa é uma crise dual, política e econômica. A análise dos riscos políticos deve embutir a dimensão econômica, sob pena de se delegar essa tarefa exclusivamente ao mercado. Entre as várias mudanças nos critérios de legitimação, analistas do Datafolha Paulino e Janoni (Folha, 19/10, A10) registram uma verdadeira mutação. Pela primeira vez o candidato identificado como “defensor dos ricos” lidera as pesquisas, na contramão das eleições anteriores, quando esse era o atributo dos derrotados (Serra, Alckmin, Aécio). Atribuem isso à mudança na composição da sociedade brasileira, ou seja, ao papel estratégico das classes médias emergentes, de escolaridade média ou superior, mas baixos salários. Suas aspirações refletem aburguesamento: ordem nos serviços públicos, segurança na vida privada (família) , para “alcançar por méritos próprios (trabalho)” os padrões das classes mais altas.
Esse fenômeno inédito pode ser aprofundado à luz de uma das contribuições de Albert Hirschman quando há 40 anos se debruçou sobre um paradoxo: a tolerância pela desigualdade entre os “setores deixados para trás” era maior justamente quando ela aumentava, isto é, durante o crescimento acelerado. A percepção do aumento da desigualdade emergia apenas na reversão do ciclo econômico, pela demanda por reformas – impondo-se então aos governantes uma correção de rumos e também reformas redistributivas. O paradoxo resultava da expectativa fundada na experiência, ou seja, os evidências de aumento generalizado da renda em termos absolutos nos anos de bonança permitia projetar sobre o futuro a hipótese de que a fila continuaria avançando . É o efeito túnel. Ele legitima os governos incumbentes enquanto dura o crescimento.
Entendo que o esgotamento desse efeito explica o eleitor de Trump e os do Brexit, por exemplo, mas aqui assume outros contornos. A bonança trouxe redução, e não o aumento das desigualdade, graças à integração (parcial) à economia global e às políticas distributivas do PT. Mas a ação corretiva exige reformas econômicas que implicam redistribuição de privilégios e de penalidades, além das necessárias para barrar a captura do Estado.
* Lourdes Sola é cientista política, pesquisadora sênior da USP, foi presidente da Associação Internacional de Ciência Política