Lilia Lustosa / Revista Política Democrática online
Não, não estou falando aqui da personagem de Lewis Carroll. Tampouco “apenas” da filha de Joaquim Pedro de Andrade, cineasta brasileiro, autor de clássicos como Macunaíma (1969), O Padre e a Moça (1966) e tantos outros que enriquecem nossa cinematografia. Refiro-me à Alice de Andrade, documentarista de mão cheia, uma apaixonada por Cuba, país onde fez seus estudos no início dos anos 90 e para onde retorna amiúde, com o sempre objetivo de entender aquela ilha tão amada por uns e tão questionada por outros.
Alice estudou na utópica escola EICTV – Escuela Internacional de Cine y TV, localizada em San Antonio de los Baños. “Escuela de Tres Mundos” em sua origem, hoje “Escuela de Todos los Mundos”. Instituição criada em 1986 pelo Comitê de Cineastas da América Latina, do qual faziam parte o argentino Fernando Birri e o colombiano Gabriel Garcia Márquez. Uma filial da Fundación del Nuevo Cine Latinoamericano que contava com o apoio de Fidel Castro. Seu objetivo era formar cineastas do chamado terceiro mundo – América Latina, Ásia e África –, que se tornassem replicadores daquele ofício em seus países. O método de ensino era o “aprender fazendo”, no caso “filmando”. Para compor o corpo docente, profissionais da ativa, originários dos mais diversos países, eram chamados. Entre eles estava o paulista Sérgio Muniz, membro do grupo de documentaristas que ficou conhecido como Caravana Farkas e autor do importante Você Também Pode Dar Um Presunto Legal (1971). Sérgio participou não apenas da idealização da EICTV, como ocupou ali o cargo de Diretor Acadêmico de 1986 a 1988. Já o crítico e cineasta baiano Orlando Senna foi diretor geral de 1991 a 1994, ambos deixando belo legado brasileiro na Escuela.
Mas voltando à Alice… Formada em roteiro, encontrou na convocatória de série SOUTH, do Channel Four, os recursos para realizar seu primeiro documentário, o curta-metragem Luna de Miel, para o qual entrevistou uma série de casais que estavam na iminência de contrair matrimônio e ganhar assim o direito de alugar vestido, comprar bolo, bebidas, enxoval, “fotos iluminadas” e ainda de passar três dias em um hotel 5 estrelas. Era uma espécie de treat que o governo da ilha concedia a seu povo, em uma surpreendente contradição à austeridade do “Período Especial Em Tempos de Paz”, iniciado com o fim da URSS e de seu apoio à Cuba.
Na ocasião, Alice entrevistou 40 casais com o objetivo de selecionar os que lhe pareciam mais adequados para seu filme. Acabou ficando com apenas dois. Ela sabia, porém, que o material filmado dava para muito mais. E foi o que aconteceu. Alguns anos depois, a cineasta retornou a Cuba e realizou Vinte Anos (2016). Desta feita, um longa-metragem em que revisita um dos casais de Luna de Miel e mais dois outros, excluídos antes por falta de espaço. Nesse meio tempo, Alice fez ainda Memória Cubana (2010),em que deixa de lado as histórias das “bodas” e investe na história da Revolução e da criação do ICAIC – Instituto Cubano de Arte e Industria Cinematografica, responsável pelo nascimento do Noticiero ICAIC Latinoamericano, cinejornal semanal que mostrava ao povo cubano a realidade da ilha e da América Latina. Imagens hoje declaradas “Memória do Mundo” pela Unesco.
Para realizar essa obra, a ex-aluna da EICTV seguiu as premissas da escola e partiu em busca dos companheiros cineastas espalhados pelo mundo. Eles foram aonde Alice não podia chegar: Espanha, Venezuela, Bolívia… Uma prova de que o sonho de Birri-Márquez-Muniz-Fidel talvez não fosse tão utópico assim!
Narrados em primeira pessoa, tanto os filmes como a série de Alice não escondem nunca seu amor pela ilha e por sua gente, ainda que a cineasta não enxergue ali só maravilhas. E é aí que está a grande beleza de seu trabalho, já que, ao mesmo tempo que exalta as conquistas da agora distante revolução de 1959, não se furta a lançar um olhar crítico às restrições e à falta de oportunidades presentes na vida de seus amigos cubanos. Uma gente que sofre, ri, se orgulha, se revolta, mas que nunca desiste de lutar. Sua obra é intimista, pessoal e até mesmo física. Marcas de um cinema afetivo, feito no peito, na raça e no coração. Alice às vezes até endurece, “pero sin perder la ternura jamás”.
*Lilia Lustosa é crítica de cinema e doutora em História e Estética do Cinema pela Universidad de Lausanne (UNIL), Suíca.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de fevereiro/2022 (40ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP).
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