Hoje* é Dia do Brasil, país que só existe assim, grande e todo ele a falar português, porque D. João VI foi o único que enganou Napoleão (é o próprio corso que o diz) ao trocar Lisboa pelo Rio de Janeiro e ao criar lá Pedro, menino que um dia seria o primeiro imperador brasileiro. Foi esse mesmo D. João VI quem começou o museu nacional que há dias ardeu na Quinta da Boa Vista, no Palácio de São Cristóvão que serviu de casa à família real portuguesa (ali nasceu D. Maria II, a nossa rainha carioca) e depois de 1822 à família imperial brasileira, todos Bragança. Sim, D. João VI foi um rei admirável, talvez mais bem recordado no Brasil, que deixou de ser colónia graças a ele, do que em Portugal, apesar da justiça que lhe começa a ser feita por biógrafos como Jorge Pedreira e Fernando Dores Costa.
Foi D. Pedro I (IV de Portugal) que proclamou a independência do Brasil a 7 de setembro de 1822, o célebre grito do Ipiranga que hoje é assinalado como dia feriado num país que é o quinto maior do mundo, também o quinto mais populoso e o oitavo mais rico e que continua promissor mesmo com todas as crises, políticas, sociais ou económicas. Graças a ter nascido como monarquia, o Brasil resistiu aos separatismos diversos, desde a Confederação do Equador à Revolução Farropilha, e evitou o destino fragmentado da América de língua espanhola. O mérito dessa unidade é de D. Pedro I, sem dúvida, mas também do pai. Aliás, muito do pai, figura tantas vezes injustiçada.
Abra-se um qualquer livro escrito por historiadores anglo-saxónicos que fale das Guerras Napoleónicas e o mais certo é que em meia dúzia de linhas D. João VI ser descrito no mínimo como indeciso, no máximo como um cobarde. E para ridicularizar ainda mais a figura, dir-se-á que era quase obeso, desprezado e traído pela mulher (a espanhola D. Carlota Joaquina) e que passava a vida a comer franguinhos, que guardava nos bolsos da casaca para quando tivesse fome. Mesmo o brasileiro Laurentino Gomes, autor do best-seller 1808, não resistiu a que o pós-titulo do livro sobre o desembarque dos Bragança no Rio de Janeiro fosse “como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil”. Louca D. Maria I? Sim, depois de saber da guilhotina que matava reis em França. Medroso D. João VI? Injusto dizê-lo. Corrupta a corte portuguesa? Não menos do que tantas outras.
D. João chegou ao Brasil ainda como príncipe regente. Não fora educado para reinar, mas a morte do irmão mais velho fê-lo herdeiro do trono e depois a loucura da mãe obrigou-o a governar antes de tempo, assumindo a regência numa época difícil em que a França ameaçava Portugal e a Inglaterra insistia na lealdade do velho aliado. Preso entre a chantagem das duas grandes potências, qualquer decisão era arriscada e não admira que D. João adiasse as que pudesse. Foi o que fez em relação à transferência da corte para o outro lado do Atlântico, plano antigo que foi executado à pressa em finais de 1807, já com as tropas francesas à porta de Lisboa, parecendo pois mais uma fuga. Partiu a família real e partiu a corte, dez a 20 mil pessoas, consoante as contas. Nunca um monarca tinha ido tão longe, nunca um monarca europeu pisara as Américas. Essa honra cabe a D. Maria I, para os mais formalistas, ou a D. João VI, para os que desvalorizam que só tenha sido rei a partir de 1816, ano da morte da mãe.
O que importa é que o rei fraco na Europa se fez forte nas Américas. Enquanto Fernando VII de Espanha era feito prisioneiro e substituído no trono por José Bonaparte, D, João VI ordenava a partir do Rio de Janeiro o ataque à Guiana Francesa, integrada por uns anos no Brasil, e a invasão do Uruguai, em teoria possessão do irmão do imperador corso que usurpara o trono espanhol. Mesmo depois de findas as Guerras Napoleónicas em 1815, D. João continuou a inovar a partir do Rio de Janeiro: acabou com o estatuto de colónia ao rebatizar os seus domínios de Reino Unido de Portugal e do Brasil; enviou a Washington o abade Correia da Serra como embaixador desafiar James Monroe (o presidente da futura doutrina homónima) a uma aliança com os Estados Unidos que criasse o que chamava um sistema americano. Não resultou a iniciativa, entre outras razões, porque a conversa culta do português não seduzia Monroe da mesma maneira que a Thomas Jefferson e a James Maddison, verdadeiros admiradores do abade nascido no Alentejo.
Viveu 13 anos D. João no Brasil. Pelo que se sabe, foram anos em regra felizes, mesmo D. Miguel não lhe deu grandes problemas. Ali deixou legado, não só o museu agora perdido, como também outro tesouro da cidade, o Jardim Botânico. Parece que não queria partir, que se acostumara a ser rei nos trópicos, um monarca a sério nas Américas, não um de pacotilha como será depois, no México, Iturbide, que acabará mal. Apanhado num turbilhão revolucionário, D. João VI percebe, ao partir para Lisboa por insistência das Cortes liberais, de que pode perder o Brasil e diz assim a D. Pedro: “Antes para ti, que me respeitas, do que para os bandidos”, leia-se revolucionários como o venezuelano Simon Bolívar.
Antes de morrer, D. João VI fez ainda um último gesto pelo Brasil, reconheceu a independência através de um tratado. Logo em 1825, antes de qualquer outra nação europeia. Só os Estados Unidos se anteciparam, pressionados pelo espírito monroísta da América para os americanos. A título de comparação, Fernando VII nunca aceitou a perda do império colonial e meio século depois da batalha de Ayacucho ainda a Espanha hesitava em reconhecer o Peru.
Nascido no tempo do absolutismo, D. João VI morreu em 1826 como monarca constitucional. Rei que viveu em dois continentes, viu pois dois mundos políticos também se sucederem. Portugal pode talvez queixar-se da sua longa ausência, só justificada pelo amor ao Brasil depois de 1815. Mas hoje quem fala português tem de agradecer como este rei, com o seu exército mas sobretudo com o seu aparelho de Estado composto por doutores de Coimbra, consolidou o gigante Brasil. Foi D. Pedro que com os conselhos de José Bonifácio (paulista e antigo professor em Coimbra) se aventurou na independência, mas o príncipe nascido em Queluz e aos dez anos levado para o Rio de Janeiro foi inspirado pelo pai e soube interpretar o desejo de emancipação do povo brasileiro. O prémio possível para a dinastia dos Bragança foi terem dois irmãos nascidos no Palácio de São Cristóvão a governar os dois países já separados. D. Maria II cá, D. Pedro II lá. Dois filhos de D. Pedro, dois netos de D. João. Dois bisnetos da rainha louca que, num momento de lucidez, pediu que não fossem demasiado céleres na ida para os barcos em 1807, não fosse parecer que a família estava a fugir.
E sim, D. João VI era muito piedoso. Adorava música religiosa. E sim, D. João VI tardava a decidir. Podia ter partido mais cedo para o Rio de Janeiro, tal como podia ter sido mais rápido a regressar a Lisboa. E sim, levava nos bolsos pequenos frangos assados. Mas aquilo que deve ficar como o essencial é que foi um rei que “enfrentou pressões poderosas a vida inteira. Apesar disso, foi o único soberano que enganou Napoleão Bonaparte, o maior génio militar de todos os tempos. Preservou a coroa e a independência de Portugal e transformou o Brasil, de uma colónia atrasada e proibida em um país independente”. Quem o afirma é Laurentino Gomes, o autor do tal 1808 (e de 1822). É uma síntese justíssima.
*Artigo publicado originalmente no dia 07/09/2018.