Raul Jungmann descarta um cenário de ruptura institucional, mas não o risco de episódios similares à invasão do Capitólio nos EUA
Por Isabella Marzolla / O Estado de S. Paulo
“Nesse clima permanente de crispação, em algum momento ocorrerá uma derrapagem, isto é, um conflito. Espero estar errado, mas é a consequência lógica de todo esse processo”.
“Não sei se aqui teríamos algo similar à invasão do Congresso, como ocorreu nos EUA. Mas o risco existe, sobretudo se o Presidente vier a perder as eleições no primeiro ou segundo turno”.
“O Presidente, ao propor armar os brasileiros, sem nenhuma ameaça que justifique, poderia levar a um conflito de brasileiros contra brasileiros e desembocar numa guerra civil, algo remoto, sem dúvida. É uma hipótese você chegar nesse nível de confronto, mas existe”.
“Se Lula ou qualquer outro for eleito, os militares permanecerão fiéis ao seu compromisso constitucional. Não haverá veto”.
Com experiência política e bom trânsito entre as Forças Armadas, o ex-ministro da Defesa e ex-ministro da Segurança Nacional (governo Temer) Raul Jungmann, descarta um cenário de ruptura institucional, mas não o risco de conflitos armados e episódios similares à invasão do Capitólio nos EUA.
Quanto às manifestações marcadas para amanhã, ele as enxerga com apreensão: “Quando a política entra numa instituição armada, seja ela militar ou policial, a hierarquia e a disciplina saem pela janela. As FFAAs, enquanto instituições e/ou corporações, não estão se manifestando politicamente. Alguns militares, sim. É a quebra de regulamentos e protocolos”.
Raul Jungmann, 69, foi Ministro da Defesa e da Segurança Pública no governo Temer, e Ministro do Desenvolvimento Agrário e Ministro Extraordinário de Política Fundiária no governo FHC.
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Amanhã estão marcadas manifestações pró-governo nas principais capitais e cidades do País. Alguns coronéis e policiais militares expressaram apoio às manifestações. O que pensa a esse respeito?
Quando a política entra numa instituição armada, seja ela militar ou policial, a hierarquia e a disciplina saem pela janela. Policiais ou militares se pronunciarem politicamente é a quebra de regulamentos e protocolos que regem a ação de forças policiais ou militares, enquanto agentes de Estado.
Qual a gravidade de coronéis e policiais militares se manifestarem abertamente sobre suas preferências políticas e partidárias?
As FFAAs, enquanto instituições e/ou corporações, não estão se manifestando politicamente. Alguns militares, sim. O que se choca com o regulamento disciplinar das forças e tem que ser contido.
Como vê a presença maciça de militares em cargos administrativos do governo?
A “presença maciça” de militares no executivo não é de agora, embora esse governo tenha ultrapassado em quantidade todos os anteriores. Porém, a responsabilidade por esse estado de coisas é do Congresso Nacional, que é parceiro da crise, ao não regulamentar a participação de militares, sobretudo da ativa, no executivo. Idem, ao não estabelecer que militares e policiais que forem para a política não retornem a suas corporações, além de fixar uma quarentena de alguns anos.
Dados os recentes ataques do Presidente ao Poder Judiciário, o quão ameaçada está a democracia brasileira e o quanto, como imprensa e sociedade, devemos nos preocupar?
O Presidente encontra-se mais e mais isolado. Não detém força para promover um golpe de Estado. Mas, de promover distúrbios, conflitos e violência, sim. Todos devemos nos preocupar com isso. Porém, as instituições, a mídia, a sociedade e o empresariado têm reagido crescentemente.
É possível que o Brasil presencie algo semelhante à invasão do Capitólio nos EUA?
Não sei se aqui teríamos algo similar à invasão do Congresso, mas o risco existe, sobretudo se o Presidente vier a perder as eleições no primeiro ou segundo turno. A narrativa dele é de não aceitação de um resultado negativo e de incitamento ao conflito.
Em carta ao Supremo, o senhor sugeriu que a proposta de armar os brasileiros poderia levar a um conflito. Comente.
O Presidente, ao propor armar os brasileiros, sem nenhuma ameaça que justifique, poderia levar a um conflito de brasileiros contra brasileiros e desembocar numa guerra civil, algo remoto, sem dúvida.
Pode desembocar nisso, aponta para isso, é uma hipótese, porque o que ele está propondo é armar brasileiros. Armar contra quem? Não tem ameaça, nem externa e nem interna, ninguém está atentando contra a democracia, não temos nenhum país ameaçando invadir o Brasil, então por que armar brasileiro? Para não ser escravo? Não ser escravo de quem? Isso é um discurso totalmente equivocado, maluco e que no fundo é para jogar brasileiros contra brasileiros, é guerra civil.
Olha, é uma hipótese você chegar nesse nível de confronto, mas existe.
Para que armar? Para que ter esse discurso de um “povo armado não será escravizado”? Que loucura é essa? Inclusive tem crescido o armamentismo. A Polícia Federal, que faz o registro de armas verificou que no ano de 2020 comparado com 2019, cresceu em 90% o número de registros, é o maior crescimento em um ano na série histórica. Então é evidente que em algum momento isso pode derrapar, quer dizer, acontecer turbulência, conflito etc.
Nos círculos bolsonaristas, ainda se fala em ameaça comunista. Existe um fantasma da Guerra Fria a essa altura?
Para alguns setores autoritários e delirantes, é preciso criar um inimigo, ainda que imaginário, para promover a coesão dos seus apoiadores. Esse é um dos pilares das falas do confronto e do ódio.
Em outra entrevista o senhor disse que o alto oficialato tem uma visão bastante crítica a respeito do STF, algo que remonta à decisão do ministro Edson Fachin de zerar as ações contra o ex-presidente Lula. De onde veio essa postura? Como os militares reagiriam se Lula se elegesse Presidente da República ano que vem?
Essa postura vem de três percepções acerca do STF (Supremo Tribunal Federal): primeiro o Supremo promove a insegurança jurídica (caso do julgamento em segunda ou terceira instância), depois impede o Presidente da República de governar e por último desmontou a Lava Jato.
Se Lula ou qualquer outro for eleito, os militares permanecerão fiéis ao seu compromisso constitucional. Não haverá veto.
O senhor já afirmou diversas vezes que não há risco de ruptura democrática, que as Forças Armadas não estão disponíveis para nenhuma aventura ou golpe, mas que teme o cenário das eleições presidenciais em 2022. Por quê?
Porque o Presidente vem afirmando que não haverá eleições se houver fraude, repetidamente busca desmoralizar a Justiça Eleitoral (TSE) e o seu presidente, Ministro Barroso, e propõe armar a população. Toda essa narrativa aponta para que? A incitação de qualquer resultado que não a sua vitória, e o incitamento ao confronto por parte dos seus partidários.
Nesse clima permanente de crispação, em algum momento ocorrerá uma derrapagem, isto é, um conflito. Espero estar errado, mas é a consequência lógica de todo esse processo.
Em poucas palavras, como descreveria o Presidente Bolsonaro e seu governo?
Em processo acelerado de isolamento, perdendo governabilidade, errático e autoritário. Mas continua com um apoio popular ponderável de 20 a 25%.
Como Bolsonaro está sendo visto dentro das Forças Armadas?
Há um crescente desconforto por parte dos militares.
O senhor foi Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Temer. Como avalia a atuação do atual Ministro de Justiça e Segurança Pública, Anderson Torres?
Até aqui desconheço uma política nacional de segurança pública do atual governo, proposta pelo Ministério da Justiça. Nada organizado e adequado para combater a violência sistêmica que agride e mata os brasileiros.
O senhor também já presidiu o INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e foi Ministro do Desenvolvimento Agrário no governo FHC. O que pensa sobre a maneira com que o governo Bolsonaro tem lidado com a população e as questões indígenas? E sobre o Marco Temporal?
A política agrária do atual governo é regressiva e contrária aos interesses dos sem-terra.
O Marco Temporal é uma questão complexa, e espero que o Supremo decida pelo que está no texto da Constituição de 1988, de uma vez por todas.
Fonte: O Estado de S. Paulo / Inconsciente Coletivo – Jornalismo de Reflexão
https://brasil.estadao.com.br/blogs/inconsciente-coletivo/raul-jungmann-bolsonaro-nao-detem-forca-para-promover-um-golpe-mas-disturbios-e-violencia-sim/