Pesquisador da Casa de Rui Barbosa acredita que distritão não melhora relação entre eleitos e eleitor
Por Marlen Couto, de O Globo
RIO – No livro “Viver em rede: as formas emergentes da dádiva” (7 Letras), com lançamento previsto para o início de setembro, o cientista político e pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa Júlio Aurélio Vianna Lopes analisa as mudanças provocadas pela emergência das redes sociais no nosso dia a dia e sua relação com a atual crise das democracias em todo o mundo, pano de fundo, no Brasil, das manifestações de junho de 2013 e da reforma política atualmente em tramitação no Congresso. Em entrevista ao GLOBO, Júlio Aurélio afirma que toda mudança no sistema político só é válida se propõe o empoderamento do eleitor e critica a reforma proposta pela Câmara: “É mudar para não mudar”.
No livro, o senhor afirma que um candidato doa aos eleitores propostas, que são retribuídas pelos votos, assim como os governantes doam políticas públicas e são retribuídos com apoio dos governados. Hoje, no Brasil, essa conta não fecha e, por isso, há descrença com a política?
O consumo não está só no campo da economia, mas também na política é assim. A democracia moderna se organiza dessa forma: os eleitores são consumidores de políticas públicas e pagam com seus votos. Daí, a competição entre os partidos. Qual é a crise? Na atualidade, os consumidores estão se tornando ativos e não mais passivos, com os direitos do consumidor, clubes de compras, e outras formas de organização, com as redes sociais. Da mesma forma, na democracia, os eleitores sempre foram passivos, objetos das ações políticas partidárias, e hoje todos os sistemas eleitorais estão em crise, sejam distritais, proporcionais, parlamentaristas ou presidencialistas, apresentam descolamento entre eleitos e eleitores, porque há uma emergência de eleitores que querem ser ativos e não mais passivos dentro da democracia.
Com frequência, se diz por exemplo que o eleitor que anula o voto é desinteressado na política. Na verdade, esse eleitor quer participar mais da política?
Não é um desinteresse pela democracia, mas pelo seu atual formato. O eleitor não adere aos partidos porque não lhe dão reciprocidade e, assim, perde sua identificação. Isso ocorre porque os partidos pressupõem um eleitor passivo, a agenda política é definida pelos partidos, não pelo eleitorado, como se o eleitorado não tivesse sua agenda. O eleitorado diz há anos em pesquisas de opinião que saúde é uma prioridade, por exemplo, e isso não se traduz em políticas públicas. Isso está por trás do desânimo, do mal-estar das democracias modernas, o que impõe uma reforma profunda das instituições democráticas. É só contrastar a baixa adesão aos partidos e a crescente intensificação do debate sobre política nas redes sociais. O debate nas redes é muito intenso, independente da qualidade, que acho muito ruim, das bobagens e asneiras ditas. Muita intensidade significa que há potencial e interesse. O que precisamos é que a democracia, a institucionalidade, seja adequada. Em todo mundo, ela não é adequada hoje.
O que podemos fazer?
O dado fundamental vem do movimento de junho de 2013. Constatei que junho de 2013 tem afinidade com outros três movimentos, Occupy Wall Street, nos Estados Unidos, Plataforma Taksim, na Turquia, e os indignados, na Espanha. Eles tiveram efeitos diversos, mas todos têm críticas implícitas ou explícitas aos representantes, denunciaram em comum a falta de feedback político dos eleitos, a falta de vínculo e confiança, cada um a sua maneira. O modo como a crise da democracia moderna vai ser enfrentada tem que ser proposto. A proposta que trago no livro é o de uma democracia compartilhativa. Esses movimentos mostraram que as redes sociais têm potencial para apresentar agendas governamentais. O que a gente precisa num momento em que estamos nos tornando uma sociedade em rede é adequar a democracia a uma sociedade em rede. A participação esporádica tem que ser tão importante quanto a participação organizada.
Como fazer isso na prática?
A primeira característica é ter um eleitorado interativo, que compartilha suas ideias. A tecnologia já permite isso. No momento de votar, por exemplo, já se poderia por meio da tecnologia definir a pauta legislativa e as prioridades governamentais e do orçamento. São coisas simples que já podem ser feitas. Já temos isso pelo portal do Senado, com o e-cidadania.
Uma reforma política focada no processo eleitoral, como a que está em tramitação, é suficiente ou será preciso olhar também para o período pós-eleição?
Toda reforma política só é produtiva e valerá a pena, se tiver como norte o empoderamento do eleitorado. É isso que o eleitorado quer. Não é necessariamente o que os partidos querem. A reforma acentua o que já acontece no atual sistema. No atual, qual é o problema? 70% do legislativo não é eleito com votos próprios. São os campeões de voto que arrastam mais parlamentares. O distritão é uma proposta que solidifica isso. Já não são os partidos que são valorizados. No sistema atual, a pessoa já importa mais que o partido, no distritão isso se reproduz e se institucionaliza. E não resolve o tema do vínculo entre eleitor e eleitos. Não se empodera o eleitor. No distritão, pode-se ter até uma maioria excluída, porque os que votaram nos candidatos não eleitos não são contemplados e eles podem ser a maioria. Os partidos no Brasil já sofreram a maldição de um cara chamado Robert Michels (sociólogo alemão), que dizia que todos os partidos se tornariam oligarquias. Ele disse isso pouco antes da Primeira Guerra Mundial. E o sujeito foi acertando. Todos os partidos, de direita e de esquerda, foram se fechando em si mesmos. A reforma como está sendo pensada hoje é mudar para não mudar. Não muda a campanha eleitoral e faz-se um fundo bilionário. O sistema eleitoral deveria ser discutido junto do sistema de governo e do partidário. É um tripé. O olho da reforma é o de manter a oligarquização do sistema partidário. Os partidos impermeáveis e de aluguel ficam mantidos.
Por que não há reações e manifestações à discussão sobre a reforma política e ao governo Temer como as que ocorreram em junho de 2013?
As interpretações de junho de 2013 causam a atual polarização da política brasileira. As interpretações foram duas e formam o que o Pablo Ortellado (professor da USP) chama de polarização. Como movimento, junho de 2013 trouxe o tema da corrupção na política. Não podemos esquecer que a Lava-Jato é posterior, começou em 2014. Os protestos de 2013 foram um movimento pela qualidade dos serviços públicos republicano e democrático. A corrupção foi colocada como primeiro obstáculo a ser vencido para se ter saúde de qualidade, educação de qualidade, mobilidade urbana e serviços públicos em geral. A polarização não nasceu na eleição de 2014, mas a partir da interpretação do que foi esse movimento. Nenhuma duas interpretações sintetiza completamente o que foi de fato junho de 2013. Uma coloca que o PT é uma quadrilha responsável pela corrupção no Brasil, embora a manifestação tenha sido contra toda a classe política. A interpretação oposta é de que a corrupção não é o principal problema do país, mas uma distração para não enxergar as desigualdades sociais, os principais problemas. No entanto, essa interpretação não questiona a questão da qualidade dos serviços públicos, tema da manifestação de junho. Essa divisão da sociedade brasileira impede que haja manifestação, é uma trava. O que sustenta o governo Temer é essa divisão, a paralisia. Um lado não admite o outro e não conversa com o outro. Até para fazer e convocar uma manifestação, eles ficam sem chão. O governo Temer não resistiria, se houvesse uma manifestação unificada. Outra coisa é o cansaço. Mesmo nas manifestações contra a Dilma, havia um contingente que dizia assim: “sou contra todos esses políticos”. A maior parte do contingente em todas as manifestações pelo impeachment não era contra a Dilma apenas, mas contra a classe política. Tem gente que não participa dessa polarização, mas está cansada, desanimada. É o mal-estar da democracia moderna. Ele vai continuar e está fermentando.