Substituí-lo é condição essencial para assegurar a estabilidade da nossa democracia
A praticamente três semanas do primeiro turno das eleições, convivemos com episódios que desbordam as fronteiras admitidas na disputa política civilizada. É necessário identificar as causas estruturais dessa radicalização das forças que têm uma visão puramente instrumental – e, por isso, distorcida – da democracia.
Uma das causas – para mim, a principal – é a óbvia inadequação do nosso sistema eleitoral. Por muito tempo o debate sobre a inconveniência (ou não) do voto proporcional tal como o praticamos foi relegado à condição de devaneio intelectual ante os desafios, sempre urgentes, das nossas tumultuadas conjunturas. Acontece que o enfraquecimento da democracia – decorrente daquele sistema – começa a cobrar alto preço, empurrando-nos cada vez mais rumo ao imponderável.
A justificada impaciência dos eleitores com a política deve-se à dificuldade de se formarem maiorias aptas a levar à frente um programa verdadeiramente popular, que conduza ao crescimento sustentável, com emprego e distribuição de renda, e refreie os apetites setoriais e corporativistas que colonizaram o Estado brasileiro. Mais ainda, nos últimos anos tivemos o recrudescimento da violência – que se alastra sob um Estado mastodôntico e inerte. Esse componente, em especial, favorece a guinada de parte do eleitorado para o salvacionismo.
As recentes mudanças feitas na legislação eleitoral – encurtamento das campanhas, fim das doações empresariais e vedação (a partir de 2020) de coligações partidárias – podem ser consideradas positivas, mas de forma alguma serão suficientes. O decisivo é mudarmos a essência do atual sistema eleitoral, baseado no voto proporcional, na direção do voto distrital.
No Estado de São Paulo, por exemplo, os candidatos a deputado disputam o voto de 33 milhões de eleitores, distribuídos em quase 250 mil km2. Na Bahia, são 10 milhões, espalhados em quase 570 mil km2. Sim, a maioria das campanhas tende a se concentrar em determinadas áreas, mas nunca a ponto de abandonar o restante do território dos Estados, que são trabalhados pelos chamados cabos eleitorais.
Esse sistema exige elevados gastos de campanha e, ao mesmo tempo, não requer e não cria laços fortes entre eleitores e eleitos. É um sistema que enfraquece a representatividade democrática. Mais ainda, a partir destas eleições, vigente a quase exclusividade do financiamento público, os defeitos do sistema proporcional se agravarão, pois os candidatos à reeleição têm muito mais força para abocanhar parte maior do dinheiro disponível.
Em suma, trata-se de um sistema eleitoral pouquíssimo sujeito à renovação, que exige enormes gastos de campanha, não cria laços entre eleitores e eleitos, estimula a proliferação de novos partidos e perpetua as mesmas práticas e ideias que a população rejeita. Mais de dois terços das pessoas não se lembram em quem votaram para deputado! O eleitor não se vê representado nesse sistema, o que insufla o espírito bonapartista que hoje vai arrebanhando parcelas crescentes do eleitorado.
Mas há saída para esse impasse: a adoção do sistema distrital misto no lugar do proporcional puro. Os Estados seriam divididos em distritos, onde os eleitores votariam nos candidatos locais, que apresentariam plataformas ligadas a programas de governo: ações no âmbito do distrito, dos Estados e do País. As campanhas seriam muito mais baratas.
O eleitor teria direito a dois votos: um no candidato distrital e outro no partido de sua preferência. Cada partido apresentaria uma lista ordenada de candidatos a deputado e obteria número de cadeiras equivalente ao seu desempenho proporcional, garantidas as vagas dos eleitos nos distritos. Essa mudança contribuiria para implantarmos um sistema político vibrante, que garantisse vez e voz a minorias relevantes, mas sem deixar de levar adiante um programa que atendesse à maioria da população.
Hoje, as eleições saturam o eleitor com candidatos que se amontoam aos milhares na TV e no rádio. Configura-se um ambiente em que é impossível o debate programático verdadeiro, sobrando apenas espaço para as técnicas do marketing. É preciso que a “classe política” acorde para a urgência de reformarmos profundamente o sistema eleitoral. Se, por omissão e culpa dessa classe, nada for feito, o sistema proporcional será cada vez mais foco de instabilidade e crises.
A principal barreira para a aprovação da grande mudança reside, evidentemente, no próprio Congresso, mais precisamente na Câmara dos Deputados. O Senado, diga-se de passagem, já aprovou um projeto de lei complementar (de minha autoria) que prevê a mudança e o remeteu à Câmara, onde aguarda a deliberação.
A resistência de muitos deputados se explica pelo receio de, no contexto de mudanças de regras, não se reelegerem. Trata-se de um sentimento previsível. A reeleição, quando formalmente permitida, é sagrada na vida pública – para vereadores, deputados estaduais e deputados federais. Apenas estes últimos votam na mudança ou não do sistema eleitoral, mas recebem pressões não apenas dos seus cabos eleitorais, são bastante sensíveis à opinião dos vereadores e dos deputados estaduais que têm sido seus aliados nas sucessivas eleições.
Estou convencido de que essa resistência poderá, contudo, ser vencida se as mudanças forem aprovadas bem antes das próximas eleições – quatro anos, se possível –, dando tempo para os deputados se prepararem para as novas regras. Mais decisiva será a pressão da opinião pública, a começar pela mídia.
Melhor seria, se viável, votarmos a mudança ainda neste ano, entre a eleição e o final da legislatura, pois os deputados que não se reelegerem tenderão a votar a favor, vislumbrando a chance de voltarem à Câmara nas eleições seguintes, mediante novas regras de votação.
Substituir o atual sistema eleitoral corrosivo é, de fato, a condição essencial para assegurarmos a estabilidade da nossa democracia.
*José Serra é senador (PSDB-SP)