A crise fiscal, agravada pela pandemia, exige a revisão de paradigmas obsoletos
As políticas voltadas para a superação da pobreza e a redução da desigualdade social tendem a promover transferências de renda ou programas setoriais, como os de educação e saúde. Tenho dedicado grande parte da minha vida pública ao fortalecimento das políticas e instituições de saúde. Mas o bem-estar das pessoas não depende apenas disso. A qualidade de vida propiciada pela cidade é igualmente importante.
Na escala do bairro, um espaço bem organizado permite o acesso a pé ou por bicicleta a equipamentos públicos, como praças, escolas, postos de saúde, quadras esportivas e teatros, além de serviços e comércio, que asseguram consumo e empregos próximos à moradia.
Na escala da cidade, a infraestrutura fundamental é a de transporte coletivo, que garante ao cidadão acesso a empregos mais distantes e a equipamentos de maior porte, como hospitais, universidades, estádios de futebol e parques.
É por isso que atualmente se procura, no mundo todo, promover um desenvolvimento urbano mais compacto, em que bairros densos e diversificados se conectam entre si por redes de mobilidade de alta capacidade, como metrôs, trens de superfície, veículos leves sobre trilhos (VLT) e ônibus de trânsito rápido (BRT, de bus rapid transit).
Procura-se garantir que todos os moradores da cidade possam chegar a uma estação de transporte de alta capacidade em até 15 minutos, a pé ou de bicicleta, modelo conhecido pela sigla TOD, de transit-oriented development ou desenvolvimento centrado no transporte. Além de aumentar a densidade de ocupação no entorno das estações, reorganizam-se o sistema viário e o reparcelamento do solo, criam-se ciclovias e calçadas acessíveis – mesmo em detrimento do espaço destinado ao automóvel privado de uso individual –, além de novos imóveis apropriados à infraestrutura de transportes.
Nas metrópoles brasileiras, a expansão dos metrôs avança muito lentamente. Em parte, pelos altos custos envolvidos, que se tornam proibitivos quando financiados exclusivamente com recursos orçamentários. No entanto, o problema também se deve a fatores institucionais.
A doutrina tradicional encara o transporte ferroviário de passageiros como um serviço autocentrado, exclusivamente destinado a deslocar pessoas de um ponto a outro da cidade. Trata-se de uma visão míope. Nos países desenvolvidos o metrô não se limita a implantar e gerenciar linhas férreas, mas reurbaniza seu entorno, com o objetivo de melhorar o aproveitamento dos terrenos próximos, aumentando a densidade da região, criando demanda e receitas aptas a financiar o investimento. Em outros países, como o Japão, essas receitas não tarifárias chegam a 80% do faturamento total.
Aqui desapropriamos apenas o estritamente necessário para a instalar linhas e estações. Nos trechos de superfície, as linhas de trem seccionam o tecido urbano, criando uma separação absoluta entre os dois lados da via, o que degrada o seu entorno. Chega-se ao absurdo de desapropriar partes de imóveis, deixando para os proprietários terrenos imprestáveis, de dimensões inferiores às mínimas exigidas para a construção de uma edificação.
Os planos diretores ampliam o potencial construtivo dos terrenos próximos às estações, a fim de propiciar maior verticalização e o consequente adensamento. Mas essa diretriz acaba sendo frustrada pela fragmentação das propriedades, que tornam inviáveis as incorporações imobiliárias.
Para superar esse desafio o novo marco legal das ferrovias, em tramitação no Senado, contém uma seção voltada para as operações urbanísticas. A implantação de infraestruturas ferroviárias passará a incorporar projeto urbanístico do entorno, destinado a minimizar possíveis impactos negativos, propiciando aproveitamento eficiente do solo urbano. Além disso, prevê-se a captura do valor da terra, que não deve ser vista apenas como uma receita acessória à tarifária, mas como fonte ordinária de financiamento do transporte ferroviário.
Incorporando técnicas internacionais de reparcelamento do solo, a execução desse projeto será promovida pela própria operadora ferroviária, que deverá constituir um fundo de investimento imobiliário aberto à participação dos proprietários de imóveis.
Tendo em vista que muitos imóveis têm pendências fundiárias que impedem sua negociação no mercado, o projeto altera também a lei das desapropriações, para permitir a desapropriação para execução de planos de urbanização ou renovação urbana, com posterior exploração econômica dos imóveis produzidos. Além disso, reconhece os direitos possessórios dos ocupantes de núcleos informais consolidados, que também deverão ser indenizados.
A crise fiscal em que se encontram todos os entes da Federação, agravada pela pandemia de covid-19, exige a revisão de paradigmas obsoletos. No caso do transporte ferroviário, é preciso tratar a instalação de infraestruturas como uma oportunidade de reestruturação abrangente do tecido urbano, capaz de produzir cidades mais justas, acessíveis e sustentáveis.
Chegou a hora de pormos as nossas cidades nos trilhos.
*Senador (PSDB-SP)