Urge uma legislação geral de combate a pandemias e desastres de calamidade nacional
A pandemia de covid-19 é uma calamidade que combina três dimensões: econômica, sanitária e social. Ela causa um choque negativo na demanda e na oferta da economia, afetando a produção, o emprego e a renda. Suas proporções de doença e mortes provocam um choque social: milhões de pessoas, sem emprego ou renda, tornam-se vulneráveis e outras tantas aprofundam sua vulnerabilidade preexistente. Paralelamente, os efeitos da pandemia sobre a população causam um choque no sistema de saúde, ameaçando-o de colapso. A existência prévia de acentuada crise política é sério agravante.
Uma pandemia de coronavírus era prevista pela comunidade científica internacional, mas ao eclodir obrigou o poder público em todos os países a atuar de improviso. A maioria das nações tem adotado medidas pontuais de enfrentamento de emergência da disseminação do vírus e de tratamento dos infectados: transferências de recursos para grupos vulneráveis ou afetados pela pandemia, garantias e subsídios para empresas e proteção ao mercado de trabalho.
A experiência internacional aponta novos rumos para enfrentar calamidades públicas. O Fundo Monetário Internacional (FMI), por exemplo, publicou recentemente uma nota técnica que defende a ideia de “válvulas de escape” a serem acionadas em situações de calamidade. Isso permitiria que “regras contra desastres” fossem automaticamente acionadas, assim como é feito quando as regras fiscais são desobedecidas.
O desafio de desenhar políticas públicas às pressas, entretanto, é imenso e afeta mais os países onde há falhas de governo. Nesta pandemia, saíram-se melhor países como a Nova Zelândia, onde a espinha dorsal do orçamento público são políticas de bem-estar e saúde. A Austrália adotou um modelo de gestão compartilhada entre o governo federal e os entes federativos no enfrentamento da covid-19, dando transparência às iniciativas do poder público e funcionando como uma política nacional contra a pandemia.
No caso dos Estados Unidos, não foram tomadas medidas de planejamento de longo prazo, nem medidas imediatas de pronta resposta. Entretanto, desde a pandemia da Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars), em 2003, causada por coronavírus, a ocorrência de novas pandemias era tida por certa, a dúvida seria quando. Naquele ano, um Estoque Farmacêutico Nacional, criado ainda na administração Clinton (1993-2001), fora transformado em Estoque Estratégico Nacional, que, no entanto, nunca chegou a reunir insumos e equipamentos básicos, tais como máscaras ou remédios genéricos, indispensáveis para enfrentar uma pandemia. O resultado é conhecido, tendo sido agravado pelo empenho presidencial em se opor ao combate à pandemia.
O governo brasileiro, desde o início, tinha várias condições favoráveis para encarar com eficiência a pandemia. O primeiro, fortuito, foi o começo tardio da presença e disseminação do vírus em nosso território, dando aos órgãos públicos mais tempo para se prepararem, além de proporcionar exemplos, em outros países, do que fazer e do que evitar. Conta também com um sistema de saúde nacional e de alcance universal, gratuito, cobrindo desde o atendimento médico, do mais simples ao mais complexo, até o desenvolvimento de pesquisa e a distribuição gratuita de medicamentos essenciais. E acumulou, ao longo de décadas, uma bem-sucedida experiência de campanhas nacionais de vacinação.
Entretanto, essas vantagens de nossa gestão da saúde pública não se converteram automaticamente em mecanismo capaz de planejar e gerir uma máquina de guerra de combate a um desastre das proporções da pandemia de covid-19. A começar por planejamento estratégico de diagnóstico, elaboração de políticas, implementação de gestão da crise provocada pela pandemia, que vai muito além de seus aspectos sanitários.
Um importante obstáculo são as inevitáveis oposições internas a uma política dessa magnitude. O surgimento de uma quinta-coluna, comandada pelo próprio presidente da República, certamente não ajudou, e ficamos condenados à improvisação em todos os níveis de governo. No início da crise, regras fiscais foram usadas pelo Executivo como pretexto para não atuar energicamente, mesmo após o Congresso e o Supremo Tribunal flexibilizarem os diplomas legais em vigor. Diante dessa omissão, partiu do Congresso a iniciativa de aprovar a Emenda Constitucional 106, a fim de instituir um apropriado regime fiscal, financeiro e de contratações para atender às necessidades de um estado de calamidade pública internacional.
Cabe destacar que o novo dispositivo constitucional não deveria restringir-se à pandemia do novo coronavírus, mas alcançar qualquer calamidade decretada pelo Congresso Nacional em razão de emergência provocada por fatores externos. O regime extraordinário instituído pela Emenda 106 alinha-se às “válvulas de escape” propostas pelo FMI. Nesse sentido, é urgente a adoção de legislação geral estabelecendo, nos três níveis de governo, a regulamentação de uma política nacional de segurança sanitária, dotada de um arranjo institucional permanente de combate a pandemias e outros desastres que provoquem estados de calamidade nacional.
SENADOR (PSDB-SP)