Ficar contra o Reisb é como ser contra a luz elétrica e, literalmente, contra a água encanada e o saneamento
Tenho insistido há muito tempo na ideia de que o sistema de saneamento é supertributado em nosso país, fator que corrói sua capacidade de investimentos e freia a expansão dos serviços de água e esgotos. O ponto marcante dessa distorção ocorreu no início do governo do presidente Lula, quando o PIS e a Cofins passaram a incidir sobre o valor adicionado das empresas. Antes, incidiam sobre o faturamento. No processo de mudança, a alíquota foi aumentada. Dadas as peculiaridades da função de produção do saneamento, a receita do PIS/Cofins extraída do setor aumentou quase três vezes em termos reais, equivalendo a cerca de 25% do investimento total da área!
Motivado para corrigir ou pelo menos atenuar essa distorção, apresentei em 2015 um projeto de lei criando o Regime Especial de Incentivos para o Desenvolvimento do Saneamento Básico (Reisb). Esse projeto foi aprovado no Senado e na Câmara, mas terminou desidratado por veto parcial do Executivo.
Em essência, o Reisb previa a possibilidade de que o PIS/Cofins devido pelas companhias de saneamento fosse destinado a novos investimentos das empresas. Seriam “novos” de verdade, pois se uma empresa tivesse investido 100 nos últimos cinco anos, só teria direito a crédito do PIS/Cofins devido sobre o adicional de investimentos que viesse a realizar nos anos subsequentes.
Para superar as limitações impostas pelo veto, apresentei neste ano o Projeto de Lei do Senado (PLS) 52, reidratando e aperfeiçoando a ideia. O relator do Reisb na Comissão de Assuntos Sociais, senador Waldemir Moka, deu um parecer favorável que contou com a aprovação – entusiasmada – de representantes de todas as correntes políticas.
No livro O Mapa Fantasma, Steven Johnson narra os eventos relacionados à epidemia de cólera de 1854 em Londres. Até então, a crença científica era de que o cólera fosse transmitido pelo “miasma” emanado dos rios poluídos. O médico John Snow, num trabalho epidemiológico brilhante, rastreou e mapeou todas as ocorrências individuais e conseguiu demonstrar que o cólera era provocado pela água contaminada.
A nova teoria de Snow encontrou resistências na comunidade científica, mas, com a ocorrência do Great Stink do Rio Tâmisa, que atormentou os londrinos em 1858, as autoridades decidiram pela construção de um sistema que levasse todos os dejetos até o estuário do rio.
Essa obra monumental e pioneira, que incluiu várias estações elevatórias – um feito tecnológico para a época –, livrou a população de um esgoto a céu aberto e remodelou as margens do Tâmisa, no que hoje se chamaria de revitalização urbana.
Assim, com uma tecnologia que atualmente seria considerada rudimentar, foi construída a rede de esgotos de Londres, em apenas seis anos. Aqui, mais de um século e meio depois, estamos ainda considerando a hipótese – otimista – de universalizarmos o tratamento de esgotos em 2033!
Nossa cobertura de esgotos (83%) é inferior à da Argentina (96%); do Chile (99%); do Paraguai (89%) e do Uruguai (96%). De 2005 a 2015, aquela cobertura aumentou no Brasil somente 5 pontos porcentuais, de 77,7% para os atuais 83%. O Paraguai nos ultrapassou no período: saiu de 76% para 89%, uma melhora de 13 pontos.
Além disso, nossa cobertura ainda é muito deficiente quanto ao tipo de coleta. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2015, temos rede coletora para apenas 54% da população.
Em algumas regiões, a situação é pior do que a média. No Pará, por exemplo, o porcentual das famílias que recebem até 1 salário mínimo sem rede de esgotos ou com atendimento precário é de 79%, ou seja, apenas 1 em cada 5 domicílios está ligado à rede coletora.
Segundo o Ministério da Saúde, tivemos 340 mil internações por infecção gastrointestinal em 2013. A falta de cobertura provoca 330 mortes a mais por ano, decorrentes de infecções evitáveis. A insuficiência de saneamento afeta o desempenho escolar em até 30% nas áreas não atendidas.
Na verdade, os dados demonstram que a expansão da rede de esgotos é uma política essencialmente redistributiva, em termos regionais e de renda.
Aliás, um efeito comprovado e muito relevante para os mais pobres é a valorização imobiliária nos bairros e regiões beneficiados pela implantação do saneamento básico. A melhor infraestrutura cria condições para novas atividades econômicas e novos empreendimentos. Ao fim desse ciclo virtuoso, a renda média nas regiões atendidas aumenta. Estima-se que só o efeito de valorização imobiliária provocada pela universalização do saneamento equivaleria a um ganho global de R$ 178 bilhões.
E há, ainda, vantagens e benefícios insuspeitados. Por exemplo, nas áreas carentes de fornecimento de água, a necessidade de manter estoques mal acondicionados do produto provou-se um fator de proliferação do Aedes aegypti e, portanto, um vetor de propagação da dengue, da zika e da chikungunya. A simples melhora da qualidade do abastecimento teria um efeito decisivo no extermínio do Aedes.
Qualquer avaliação séria de custos e benefícios recomenda a adoção de um forte programa de investimentos, como o do Reisb. Hoje em dia, ficar contra esse programa é como ser contra a luz elétrica e, literalmente, contra a água encanada.
Há tanto desperdício na máquina pública, tantos exageros salariais, tantos subsídios inexplicáveis – estamos falando de isenções fiscais na casa dos R$ 200 bilhões –, muitos sem qualquer impacto positivo na economia, que parece descabido afirmar que um incentivo meritório e indispensável ao investimento em saneamento constitui uma grave ameaça fiscal.
De fato, essa resistência, basicamente, tem um conteúdo mais simbólico. Já que não se consegue entregar efetivamente resultados fiscais que revertam o crescimento da dívida, apela-se para essas demonstrações rituais de austeridade.
* José Serra é senador (PSDB-SP)