O povo brasileiro está sendo privado do acesso livre às vacinas eficazes contra a covid-19
Existe amplo consenso na maioria dos países quanto ao diagnóstico de uma tríplice ameaça, política, econômica e sanitária, que aflige a estabilidade das democracias representativas. O Brasil não escapa a essa crise, que se alastra na maioria dos países das Américas. Tenho reiterado, como em artigo publicado em dezembro, que em nosso país a crise de legitimidade do sistema político precede a crise econômica, que, por sua vez, precede a crise sanitária e é por ela agravada.
Há consenso, também, em todos os países atingidos gravemente pela pandemia – com exceção dos que se omitem em combatê-la e frequentemente se empenham em combater os que não se omitem –, em que a economia não se recupera sem que o vírus da covid-19 seja posto sob estrito controle. Diversas políticas de mitigação da disseminação do vírus foram empregadas pelos diferentes países afetados.
Elas incluem, entre outras, a simples aposta na autodisciplina da população, o menor ou maior grau de restrição da circulação de pessoas e das atividades econômicas ou até o toque de recolher. Entretanto, a pandemia não dá sinais de regredir, nem sequer de arrefecer, portanto, não há receita feita a escolher.
Em nosso país, o Executivo criou deliberadamente mais uma crise, de cuja solução depende o desfecho de todas as outras: a crise da vacinação. Não há receitas 100% eficazes para o controle estrito da disseminação da doença, mas existe um número significativo de vacinas com alta eficácia cientificamente comprovada. Por conseguinte, os países poderão ser capazes de controlar a pandemia o suficiente para normalizar a atividade econômica se se empenharem em distribuir vacinas à população, com eficiência.
Não o Brasil. Vítima de uma guerra sem trégua de grupos entorpecidos pelo ópio do populismo de direita – com apoio explícito do Executivo –, o povo brasileiro está sendo privado do acesso livre e irrestrito às vacinas eficazes contra a covid-19. Ora, o cumprimento desse direito é a condição sine qua non de todos os outros consignados na Constituição: o direito à vida.
Passo a passo, essa guerra sem trégua começou combatendo todas as iniciativas dos Estados e municípios e das corporações médicas, que demandavam medidas eficazes de mitigação. Tão logo o Ministério da Saúde alertou sobre os riscos de disseminação da doença, a reação do Executivo foi minimizar e ridicularizar o vírus e sua disseminação, travando batalhas diárias contra a razão, os fatos e a ciência. Tendo comandado o Ministério da Saúde (o que muito me orgulha, não pelas honrarias que recebi, mas pela qualificação de seu corpo técnico, seu empenho e sua dedicação ao povo brasileiro), esse aviltamento do nosso maior instrumento de proteção da saúde causou-me indignação, como à maioria da Nação.
Quando o Ministério da Saúde anunciou a adoção de medidas protetivas das pessoas e restrições de atividades econômicas, e assim que foram previstas medidas de distribuição e estocagem de equipamentos de pronto-atendimento e de cuidados intensivos, de instrumentos de detecção da infecção etc., o Executivo federal criou um cenário de dupla personalidade. De um lado, Dr. Jekyll tentava, em vão, salvar vidas, enquanto, do outro, Mr. Hyde demitia, em menos de um mês, dois ministros da Saúde porque resistiram a permitir que o chefe do Executivo “receitasse” remédios inócuos no tratamento da doença, que apresentam efeitos colaterais graves.
A batalha decisiva pela sobrevivência da sociedade, da economia e do modo de vida brasileiro, tal como os conhecemos, está sendo travada em torno da vacinação. Isso porque existe hoje um consenso involuntário sobre o papel central da vacinação na cadeia causal que torna possível o controle da pandemia, que, por sua vez, torna possível a retomada da atividade econômica, com impactos positivos na mitigação da crise política.
Os que buscam a normalização da economia e o fim do radicalismo percebem que não há saída sem a vacinação em massa da população. Para os que suspeitam, ainda que inconscientemente, que sua sobrevivência política depende de manter um ambiente radicalizado, a economia sem rumo e o povo acuado pelo vírus, é necessário impedir uma vacinação em massa bem-sucedida.
De outra maneira, como entender a proporção de mentiras sobre a vacina, disseminadas sistematicamente, além dos obstáculos opostos à compra de vacinas já disponíveis no Brasil? Como explicar as dificuldades burocráticas para os testes de segurança e eficácia de vacinas no Brasil e a recusa a negociar a compra de vacinas já em pleno uso nas principais potências mundiais? Como explicar que uma vacina não possa ser aplicada sem ser testada no Brasil e outra não obtenha licença para teste no País?
Como explicar que um alto oficial da Intendência do Exército improvise tudo o que lhe toca, não planeje a aquisição de vacinas, não tire proveito do Plano Nacional de Imunização, criado há quase 50 anos, e tampouco seja capaz de pôr algo no lugar? A não ser que esteja em modo de guerra sem trégua… contra a vacinação.
*Senador (PSDB-SP)