Neste ano de escolhas eleitorais, é hora de sair da paralisia e de curar o doente
“É fácil fazer leis,
mas difícil governar”
Tolstoi, em Guerra e Paz
Uma curiosa contradição marca nossas dificuldades fiscais: à medida que crescem o déficit e a dívida pública, aumenta o estoque de normas que, idealmente, deveriam facilitar o controle tanto do déficit quanto da dívida. Somos pródigos na edição de regras de controle fiscal. Mas elas são inconsistentes.
Aproveitando o clima de Copa do Mundo, lembro que no ranking da OCDE nossas normais fiscais foram consideradas das mais incoerentes. Um certame no qual seria preferível termos sido eliminados.
Na Constituição, temos: 1) a regra de ouro, que interdita o financiamento de gastos correntes (principalmente salários, custeio e juros) por meio de endividamento; 2) o teto de gastos, que impede o aumento dos gastos públicos federais acima da inflação; e, finalmente, 3) o artigo 195, § 5.º, que veda a criação ou expansão de benefícios da seguridade social sem que se apontem as fontes de custeio.
Em termos de leis complementares, muitas delas derivadas de comandos gerais da Constituição, temos os principais dispositivos da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF): 1) impedimento à criação de despesas continuadas sem previsão de receita ou corte de despesa; 2) a vedação à constituição de renúncia de receita sem compensação; e 3) a limitação dos gastos de pessoal com porcentual da receita. Temos ainda as regras constantes de leis ordinárias ou resoluções do Senado: 1) limite de déficit primário (receitas menos despesas sem considerar a rolagem da dívida e os juros); 2) limites das dívidas de Estados e municípios como proporção da receita; e, finalmente, 3) limites anuais de contratação de operações de crédito interno e externo, bem como eventuais garantias da União dadas nessas operações.
A extensa lista criaria um escudo de responsabilidade fiscal à prova de bala de canhão. Mas não é isso que se verifica. Por que esses dispositivos terminam sendo inócuos? Por que continuam a aumentar os déficits e as dívidas?
A primeira causa, e talvez a mais importante, é a existência de regras – implícitas ou explícitas – de expansão de gastos constantes da própria Constituição, uma contradição evidente. Entre as explícitas, as mais importantes são as vinculações de gastos à receita, como no caso das despesas com educação e saúde nos Estados e municípios.
Mas há também as vinculações implícitas. Boa parte da despesa corrente corresponde ao pagamento de salários. O custo da expansão de serviços públicos não se limita ao período orçamentário em que ela tenha sido autorizada, mas se prolonga no tempo pelo menos até o fim do período de aposentadoria dos servidores contratados. É interessante observar que os freios legais, na melhor das hipóteses, limitariam essa expansão apenas nos três exercícios subsequentes. Ainda assim, as limitações tomam como custo os valores de contratação. As progressões funcionais e salariais, entretanto, não respeitam tais limites, pois têm dinâmica própria. A regra de controle trienal presente na LRF, portanto, tornou-se ineficaz.
A segunda razão é que as regras fiscais são dribladas por interpretações “criativas” ou são regulamentadas de maneira incompatível com sua finalidade essencial.
Nada é mais ilustrativo do quesito criatividade do que a exclusão do custo da folha de pagamento dos gastos com aposentados e das chamadas “despesas de exercícios anteriores”, para fins de observação do limite de despesas de pessoal determinado na LRF. É estranho que o custo previdenciário seja desconsiderado, quando se sabe que as despesas com aposentados chegam, em alguns casos, a ser superiores às despesas com ativos. E isso só tende a se agravar. Igualmente, os pagamentos de “atrasados” são retirados do cálculo. Não por acaso, vários Estados incapazes de pagar em dia continuam enquadrados nos limites da LRF.
Quanto à regulamentação incompatível com a finalidade da regra, o exemplo cardinal são as regras infraconstitucionais que disciplinam a regra de ouro. O objetivo essencial dessa norma é impedir que gastos correntes sejam financiados por dívida. Novas operações de crédito deveriam limitar-se ao volume do investimento público. Mas no Brasil, tal como regulamentada, a regra de ouro abre espaço para que a despesa corrente seja financiada por endividamento novo e, pior, abre espaço para distorções adicionais. E, incrível, quanto maior a inflação, mais fácil de cumprir a regra. A correção monetária da dívida permite expansão dos gastos correntes em cenários inflacionários. A regulamentação castiga gestores econômicos que, como os atuais, reduzam a inflação!
Além disso, desvalorizações cambiais ajudam no cumprimento da regra. Com as reservas em torno de US$ 400 bilhões, cada centavo de desvalorização do real transfere para o governo uma “receita” de R$ 4 bilhões. Uma desvalorização de R$ 0,50 equivale a uma receita para o Tesouro de R$ 200 bilhões. Dá e sobra para fazer tábula rasa da regra de ouro.
Assim, nosso copioso arcabouço de normais fiscais, dada a sua incoerência, acaba produzindo um efeito de acomodação, contrário ao pretendido. Um exemplo é o da mais recente norma introduzida: o teto de gastos. Para aprová-lo foi feito um esforço político sem precedentes. Durante seis meses foi o grande tema de negociação no Congresso. Enquanto isso, a reforma da Previdência, que poderia de fato contribuir para o reequilíbrio fiscal, atacando diretamente o crescimento da despesa, ficava na fila. Depois, por uma circunstância infeliz, a reforma acabou se tornando inviável neste final de mandato.
Neste ano de escolhas eleitorais, é hora de sair da paralisia. Temos de atacar a rigidez dos gastos, que crescem inercialmente. É preciso atacar diretamente as despesas que não caibam no Orçamento. Não percamos mais tempo com termômetros. É hora de curar o doente.
*José Serra é Senador (PSDB-SP)