A solução da crise passa por um federalismo de cooperação, como vem apontando Joe Biden
A economia brasileira está lidando com desequilíbrios das contas públicas simultâneos com uma pandemia imprevisível. Há forte pressão da sociedade por aumento de gastos na área social, ao mesmo tempo que os orçamentos das três esferas de governo – União, Estados e municípios – não apresentam capacidade fiscal para dar conta dessa necessidade de apoio estatal. Neste cenário incerto, uma certeza pode ser considerada apartidária: a crise fiscal tem dimensão federativa.
Sabe-se que o Brasil é uma República Federativa formada pela união indissolúvel dos Estados, municípios e do Distrito Federal. É o que está escrito no primeiro artigo da nossa Constituição. Mais ainda, nossa República se apresenta como uma organização político-administrativa que compreende três esferas de governo autônomas, nos termos do artigo 3.º da nossa Lei Maior.
Pode-se debater o tema, mas não se pode negar que nosso federalismo começa com duas palavras: união e ampla autonomia. Na maioria dos sistemas federativos os governos locais são “extensões” dos Estados federados, ao passo que no Brasil os municípios não estão subordinados a nenhuma outra esfera da Federação. É o acordo que se estabeleceu na Constituição, como condição de cláusula pétrea.
Bem, essa noção de que precisamos manter a integridade do nosso federalismo fiscal, um dos pilares da nossa Constituição, é fundamental no contexto da crise atual. Tenhamos claro que o País só vai sair desta crise e conseguir deslanchar, reduzir as desigualdades e promover o bem de todos – os objetivos da República previstos no mesmo artigo 3.º – se tornar viável um plano de curto e médio prazos, politicamente acertado com a participação das lideranças das três esferas de governo e da sociedade.
Ainda assim, o desafio é maior: essa concertação política deve envolver os três Poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário. Ou alguém ainda duvida de que medidas e ações precipitadas, ou autoritárias, de algum modo desequilibradas em matéria federativa, serão provavelmente revertidas pelo Congresso Nacional e/ou pelo Supremo Tribunal Federal (STF)? Aqui cabe lembrar nosso histórico de decisões tomadas por esses dois Poderes, alterando ou moldando iniciativas do Poder Executivo federal.
Nota-se nesse contexto próprio que importar o federalismo de colisão patrocinado pelo presidente americano, Donald Trump – União versus Estados –, é uma estratégia perigosa. Basta perceber que, se os Estados e municípios brasileiros não forem capazes de financiar suas despesas, o Brasil simplesmente para de prover bens e serviços públicos para a sociedade. Isso porque somos uma das Federações mais descentralizadas do planeta, em que quase a metade do gasto público total está alocado nos orçamentos dos governos estaduais e municipais.
Vejamos alguns números sobre o nosso federalismo fiscal a fim de evidenciar a perspectiva federativa da nossa crise fiscal em tempos de pandemia.
Os gastos com salários no setor público, sem considerar proventos de aposentadorias, representaram cerca de 13,3% do produto interno bruto (PIB) em 2019, sendo 9,1% referente a Estados e municípios. Isto é, para cada R$ 100 que são gastos com salários no setor público brasileiro, basicamente R$ 70 se referem a servidores estaduais e municipais. Em relação à contratação de bens e serviços, o Estado brasileiro gasta cerca de 5,3% do PIB, sendo que os Estados e os municípios respondem por 85%. E com relação às despesas com consumo de capital fixo? Mais de dois terços são realizados pelas administrações públicas estaduais e municipais.
Foi nessa conjuntura do sistema federal brasileiro que o Congresso Nacional aprovou o Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus. Assim que a pandemia invadiu o País – paralisando a atividade econômica e colapsando o sistema público de saúde –, a arrecadação de tributos despencou. Ao mesmo tempo, houve significativo aumento das despesas com ações governamentais adicionais para o enfrentamento da proliferação do vírus nas cidades brasileiras.
A espinha dorsal do pacote de ajuda consistiu em dois tipos de socorro financeiro: um auxílio financeiro de R$ 60,1 bilhões e a suspensão das dívidas dos entes da Federação com a União e os bancos públicos, totalizando uma folga no caixa dos Estados e municípios de R$ 47,5 bilhões. Algumas questões ainda estão sendo discutidas no Congresso, como a retomada gradual dos pagamentos das dívidas com a União, levando em consideração que os efeitos negativos da redução da atividade econômica e as ações de combate à pandemia ainda persistirão, pelo menos, no médio prazo.
É importante ter claro que as medidas a serem tomadas daqui para a frente devem assumir a dimensão federativa da crise. O governo federal precisa assumir a liderança das negociações sobre as necessárias reformas na área econômica, sem perder de vista a responsabilidade fiscal e as características do nosso sistema federativo. Bom é dizer que a solução passa por um federalismo de cooperação, como, aliás, vem apontando o novo presidente dos EUA, Joe Biden, no contexto norte-americano.
*Senador (PSDB-SP)