Para José Sarney, que consolidou a transição do governo militar para os civis, hoje os Três Poderes têm fendas que desestabilizam o país. “Estamos matando nossa democracia”
Por Monica Gugliano, do Valor Econômico
BRASÍLIA – De todos os cargos e títulos recebidos e de todas as funções exercidas ao longo de quase 70 anos de vida pública, o ex-presidente da República José Sarney se orgulha especialmente de duas atividades. Desde 1980, ele ocupa uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. Na mesma década, foi o político que consolidou a delicada transição da ditadura militar para a democracia.
Sobre a carreira de escritor e poeta, há controvérsias. A respeito do segundo motivo de orgulho, há unanimidade e não paira nem entre seus mais ferozes adversários dúvidas sobre o papel que ele desempenhou. Sarney assumiu o mais alto cargo do país, substituindo Tancredo Neves (1910-1985), presidente eleito indiretamente, que ficara doente e morreria antes de tomar posse.
Entre aqueles dramáticos dias do mês de março de 1985 e hoje já se passaram 34 anos. Não sem certo pesar, Sarney adverte que o Brasil novamente vive um momento muito difícil: “Estamos matando nossa democracia. Ela está agonizando”.
No dia deste “À Mesa com o Valor”, em que recebeu a reportagem para um café, a acirrada disputa para a eleição do presidente do Senado (cargo que Sarney ocupou por quatro vezes) ainda repercute nos noticiários, alimentando uma hipotética crise das instituições. “Ao falar em morte da democracia, me refiro ao fato de que os Poderes têm fendas em suas estruturas que estão desestabilizando o país”, afirma. “O Parlamento não legisla. O Poder Executivo legisla no lugar do Parlamento, e o Judiciário não exerce o poder moderador que deveria ter”, acrescenta ele, citando o ex-deputado e relator da Constituinte, Nelson Jobim. “Como disse há dez anos Jobim, é a judicialização da política e a politização da Justiça.”
O fato de o Poder Judiciário, na opinião do ex-presidente, ter perdido o poder moderador que lhe cabe nas democracias, fez com que o país passasse a viver em um regime de insegurança jurídica em que ninguém sabe qual pode ser o destino de sua reivindicação. “A interferência, a nítida divisão entre os ministros, é o sinal mais evidente dessa crise. São tantas as questões submetidas ao tribunal – tudo, na verdade – que isso cria uma insegurança jurídica muito grande.”
Sarney rejeita a suposição de que a crítica tenha alguma relação com o fato de o Supremo Tribunal Federal (STF) ter interferido na convulsionada eleição do Senado, mantendo a votação secreta. Uma sentença que parecia ser sob medida para beneficiar o candidato veterano Renan Calheiros (MDB-AL) – cuja candidatura teria sido apoiada por Sarney -, mas que acabou por gerar um movimento, estimulado por maciça intervenção via redes sociais, que derrotou o senador alagoano.
Ao se aproximarem da urna, os senadores abriam e mostravam a cédula com o nome do candidato que acabou vencendo, Davi Alcolumbre (DEM-AP). “Tenho uma relação de amizade com Renan e desejava seu êxito”, diz Sarney. “Mas os jornais me atribuem muito que eu não faço e uma força que eu não tenho”, afirma, sentado na cadeira de espaldar alto com ar de móvel antigo, em seu escritório na região central de Brasília.
No conjunto de salas mobiliado com simplicidade, onde trabalha quando está na cidade, Sarney fala com vagar, cultiva mais do que nunca as longas pausas na conversa, quando não o silêncio, e resiste a opinar sobre o comportamento sem nenhum decoro dos senadores na eleição do novato Alcolumbre. “Não me agradaria fazer críticas ou análises sobre comportamentos ou fatos. Observei tudo a distância.”
Sarney, que sempre primou pelo cumprimento da liturgia dos cargos que ocupou, diz que não fará o papel de censor do Senado. Da mesma forma, afirma que não aceitará o pressuposto de que Alcolumbre foi eleito por representar o “novo” na política, enquanto Renan, e até mesmo ele, seriam remanescentes da “velha política”. “Se fala na velha política no sentido de práticas ruins”, afirma.
O café, o suco de laranja e os pãezinhos de queijo na mesa ainda estão praticamente intactos. Sarney convida a repórter a experimentar os pãezinhos e conta que, para manter os cuidados que dedica à saúde, não deveria comer. Mas, só um, não? A pequena pausa serve para que ele retome o raciocínio. “Tenho certeza de que dei uma contribuição valiosa ao país. Se eu não tivesse o temperamento que tenho, a experiência política que tenho, nós teríamos retrocedido. Infelizmente a política é cruel, mas a gente tem que aceitar”, diz. “Veja tudo que eu fiz em meu governo. Fiz a Constituição. Como é que eu sou a velha política? Repetindo doutor Ulysses [Guimarães, 1916-1992]: eu sou velho. Mas não sou velhaco.”
Batizado como José Ribamar Ferreira de Araújo Costa, Sarney, o 31º presidente do Brasil, nasceu no município de Pinheiro, interior do Maranhão, no dia 24 de abril de 1930. Foi deputado, senador pelo Maranhão e pelo Amapá, governador do Maranhão, presidente da República. Desde 1950, é impossível contar a história do Brasil sem encontrar seu nome figurando entre os protagonistas. Aos 88 anos, ele é um dos políticos mais longevos do país. “Quando entrei no Congresso, ele ainda funcionava no Rio de Janeiro”, conta.
A eleição de José Sarney para o governo do Maranhão em 1965 consolidou a força política de sua família no Estado. O “clã dos Sarney” deteve, desde então, as posições de poder não apenas político, mas também em diferentes áreas sociais. Um processo que se iniciou por volta da década de 50, com seu pai, o desembargador Sarney de Araújo Costa (1901-1961). Dos três filhos de José Sarney, dois seguiram carreira na política e também se tornaram conhecidos nacionalmente. Sarney Filho foi deputado federal, ministro e hoje é o secretário de Meio Ambiente do Distrito Federal. A filha, Roseana Sarney, foi deputada federal, governadora do Maranhão e senadora da República.
No folclore sobre ele, são famosas a habilidade de falar durante horas sem dizer nada, a hipocondria e as superstições que rendem saborosas histórias na voz dos amigos. Não veste marrom, joga fora peças de roupa que acredita não lhe trazerem sorte, entra e sai sempre pela mesma porta e não gosta de falar em morte.
Na extensa biografia, que inclui passagens pelo PSD, Arena, PDS e PMDB (hoje MDB), Sarney é considerado um político que quase sempre esteve ao lado do poder, crítica que costuma refutar com veemência. “Fui contra o Getúlio Vargas, fui contra o Juscelino Kubitschek. Fui vice-líder da UDN e era da ‘Banda de Música’ da UDN. Não toquei trombone, mas toquei reco-reco. Os militares nunca me trataram como se eu fosse uma pessoa muito ligada a eles. Pelo contrário, muitos deles me chamavam de uma coisa inacreditável: comunista.”
“Banda de Música” é o nome dado ao grupo de parlamentares da União Democrática Nacional (UDN) que se destacaram pela afiadíssima oratória. Faziam oposição constante e implacável aos governos Getúlio Vargas (1951-1954), Juscelino Kubitschek (1956-1961) e João Goulart (1961-1964). Entre seus integrantes estavam Carlos Lacerda (1914-1977) e Afonso Arinos (1905-1990). “Lacerda foi o maior parlamentar, dono da maior oratória que o Brasil já teve e viu.”
O ex-presidente diz não fazer o estilo saudosista. Conta que não olha para trás e que, quando termina uma etapa, dá o período por encerrado. Portanto, nunca dirá que houve tempos melhores na política. No entanto, constata que o país vive uma fase de muito ódio, apesar de o sentimento ser um fenômeno mundial e estar muito ligado, em sua opinião, ao impacto da comunicação em tempo real na sociedade. “A internet nos trouxe a perda dos direitos individuais, da privacidade. Criou tantas versões sobre o mesmo fato que já não sabemos qual é a verdadeira. É o que chamamos de a morte da verdade”, diz, citando o livro “A Morte da Verdade – Notas Sobre a Mentira na Era Trump” (Intrínseca), de Michiko Kakutani, vencedora do Prêmio Pulitzer.
No Brasil, afirma o ex-presidente, o impacto dessas novas mídias alimentou a crise da democracia, somando-se aos problemas oriundos da Constituição de 1988. A Carta promulgada durante o governo de Sarney é vista por ele como um documento que, por ter sido feito logo depois de um regime autoritário, olha pelo espelho retrovisor e só enxerga o passado, em vez de mirar o futuro. “São regras que foram desmontando o país até chegarmos às crises que vivemos hoje.” Sarney diz não acreditar em uma solução para os problemas nacionais que dispense revisão constitucional, ainda que continuem sendo feitas reformas como a da Previdência, que considera fundamental neste momento.
A interferência das redes sociais em um país com 39 partidos políticos – número tão grande que acaba por ser o mesmo do que não ter nenhum, em sua opinião – tem acirrado conflitos entre classe política, sociedade e mídia. Os políticos, afirma, têm sua imagem cada vez mais denegrida perante à população. “A mídia, nas redes, pergunta: Quem representa o povo? Somos nós ou são esses políticos que estão no Congresso? E isso virou um confronto diário entre a mídia e a classe política.”
Mas, apesar das dificuldades, Sarney acredita que o Brasil continua “uma grande nação”. Enumera alguns progressos, como o combate à corrupção – que ele define como “um fenômeno importantíssimo na política que se destina a fazer correções no país”. Em sua opinião, a prioridade que se deu ao combate à corrupção e que trouxe tantas “inacreditáveis” revelações está sendo uma inflexão de conduta importante. Mesmo que, no processo, alguns excessos tenham sido cometidos – e serão corrigidos com o tempo, diz.
Entre eles, está a delação do ex-senador Sérgio Machado, que gravou uma conversa com Sarney, na casa do ex-presidente. Ele evita fazer comentários. Sarney não esconde a mágoa com o caso. E, principalmente, também não esconde ressentimento das consequências que o envolveram em uma investigação da Lava-Jato e culminaram com pedido de prisão contra ele, feito ao Supremo Tribunal Federal (STF) pelo então procurador-geral da República Rodrigo Janot. O pedido não foi aceito, e algum tempo depois Sarney foi inocentado. E a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva? “Lamento muito o que aconteceu e está acontecendo com Lula”, responde.
Para Sarney, a importância que se deu para debelar a corrupção deveria ser dada ao combate contra a violência. “As estatísticas anuais de homicídios correspondem ao número de soldados mortos no mesmo período na Guerra do Vietnã”. É insustentável conviver com essa situação”, argumenta.
Primeiro presidente civil após o regime militar (1964-1985), Sarney não gosta de emitir opiniões públicas sobre aqueles que o sucederam. Diz esperar que o presidente Jair Bolsonaro faça bom governo e que dê o exemplo da conciliação, harmonizando os conflitos da sociedade. “Uma sociedade democrática é uma sociedade de conflitos. Cabe ao Estado, através da intermediação política, harmonizar esses conflitos.” Para ele, o presidente da República é um ser sempre aprisionado no tempo em que governa. Recorre ao filósofo espanhol José Ortega y Gasset (1883-1955) para dizer que “o presidente é ele e suas circunstâncias”.
O ex-presidente acha que não deve dar conselhos aos que vieram depois dele. Mas gosta de lembrar que a cadeira é sempre maior do que o presidente sentado nela. “Nenhum presidente modifica essa cadeira. Ela é que modifica quem senta nela.” Ele concorda com a visão de que, no Brasil, muitos políticos ainda não têm a visão do que significam as instituições. Atribui essa deficiência à falta de cultura, de leitura dos grandes clássicos como Tocqueville, Lincoln, Joaquim Nabuco.
Sarney foi eleito pelo Congresso em janeiro de 1985 como vice-presidente na chapa de Tancredo Neves, político do PMDB, partido de oposição à ditadura, a quem Sarney se refere como um grande estadista e um dos maiores articuladores políticos que já conheceu. Pouco antes das eleições indiretas, ele deixou o PDS (partido que substituiu a Arena) por divergências com o presidente militar João Figueiredo (1918-1999) no processo de abertura democrática. Era praticamente um estranho que o PMDB fora obrigado a “engolir”.
Por isso, ao lembrar sua chegada à Presidência, Sarney observa que havia se preparado para “ser um vice discreto de um presidente forte”. Mas a morte de Tancredo Neves jogou o cargo em seu colo, deixando-o em outra circunstância: a condição de um presidente que “ninguém queria” e que, segundo ele mesmo, tinha tudo para engrossar a lista dos mandatários que, mais dia menos dia, acabariam depostos.
Nessa relação, inclui Artur Bernardes, Juscelino Kubitschek, João Goulart e Getúlio Vargas, além de si próprio. “Eu não tinha apoio político, não conhecia as pessoas com quem estava governando, não escolhera meu ministério e ainda era um político nordestino”, relata, atribuindo sua sobrevivência à capacidade de dialogar, ao temperamento pacífico e, principalmente, por ter mantido o Brasil na trajetória democrática.
Quando lhe é pedido que dê sua opinião sobre um governo com tantos generais da ativa e da reserva em cargos estratégicos, Sarney pondera que os militares e os civis são iguais dentro da sociedade, de maneira que não haveria razão para exclui-los de participar da vida pública. Além disso os militares, observa, são muito bem preparados, e o Brasil afastou os riscos oriundos do militarismo, ainda em seu governo e graças à atuação de ministros como o do Exército, Leônidas Pires Gonçalves (1921-2015).
“O militarismo é a agregação de poder político ao poder militar. O poder civil é a síntese de todos os poderes. O Brasil atravessou esse gargalo do militarismo, que foi uma marca na América Latina, com muito mais tranquilidade do que outros países. Fizemos a transição com os militares, e não à revelia deles”, diz.
Sarney concluiu seu mandato em 1990. Entregou o cargo a Fernando Collor de Mello, o primeiro presidente eleito diretamente pela população desde o golpe de 1964. Governou mais da metade do tempo no período que se convencionou chamar de “década perdida” – uma denominação que ele repudia. Saiu do Planalto com baixa popularidade (56% dos entrevistados consideraram seu governo ruim/péssimo, segundo o Datafolha) e com a economia arrasada pela hiperinflação que já se anunciava desde a sua posse, quando o índice anual superava 200% ao ano.
Ele, porém, assinala que o crescimento médio do PIB em seu governo foi de 5% ao ano e o desemprego estava na casa de 2,69%. Reconhece que de todas as decisões que tomou, se pudesse voltar atrás, não assinaria o Plano Cruzado II. “Foi a decisão mais errada que tomei. A pior. Muitas vezes eu fui um bom presidente e muitas vezes não fui. E essa foi uma das vezes em que eu não fui um bom presidente. Porque eu paguei pelo equívoco e acho que fui quem mais pagou. Mas o povo brasileiro pagou pela decisão e eu guardo isso na alma.”
O café esfriou, o suco está praticamente intacto, a tigela com os pães de queijo não dá sinais de que será esvaziada e a conversa sobre política, diz o ex-presidente, já está muito longa. Ele conta que finaliza sua biografia, já com mais de 800 páginas, mas que, por enquanto, não pensa em publicar. Atualmente, escreve artigos e textos e fez a segunda edição do “José Sarney, Bibliografia e Fortuna Crítica” (Instituto Geia). O volume de 400 páginas reúne toda a obra do autor com 120 títulos, num total de 168 edições traduzidas para 12 idiomas, entre eles coreano, grego, árabe e russo. “Agora eu só trato de livros, basicamente, e tenho tanto tempo livre que consegui editar esse volume.”
O outro livro que o ex-presidente terminou e lançou no ano passado é “Galope à Beira-Mar”. O título é inspirado no nome de um ritmo dos cantadores do Nordeste, e a produção do livro foi estimulada pelo assessor e amigo Pedro Costa – filho de Odylo Costa (1914-1979), jornalista, poeta e integrante da ABL -, que acompanha esta entrevista. Sarney conta histórias dos personagens da vida pública recente do país, relata “causos” de família, da infância em Pinheiro, no interior do Maranhão, e da juventude em São Luís. E contempla histórias das viagens do então presidente. Todas com um viés anedótico.
“Hoje, o que me mantém vivo é escrever”, diz. O ex-presidente se divide entre Maranhão e Brasília. Tem dedicado boa parte do seu tempo também a cuidar de dona Marly, a companheira de toda uma vida, que, aos 86 anos e após sofrer uma fratura na perna, não conseguiu voltar a andar. Conta que escreve com disciplina todas as noites em sua biblioteca a partir das 22h. Depois, lê até dormir. “Durmo quatro, cinco horas por noite. Quando tem uma graça de Deus, durmo seis.”
De toda sua produção literária, Sarney não esconde seu carinho por “Norte das Águas” (1969), livro que o levou à Academia Brasileira de Letras. Também se orgulha do “Dono do Mar” (1995), um romance que mereceu elogios de Jorge Amado e Darcy Ribeiro, e de “Saraminda” (2000), que Claude Lévi-Strauss descreveu como um belo livro que conquistou seu amor. “Se eu tivesse de pedir a Deus, antes de nascer, se queria ser político ou escritor, sem dúvida escolheria a segunda opção. Sei que é meio provinciano dizer isso, mas tive mais alegria em ser membro da Academia do que presidente da República.”
Sarney diz que escrever é como eternizar momentos e sentimentos por meio das palavras. É ter o poder de transfigurar as coisas, os sonhos, a vida. Prestes a completar 89 anos, o ex-presidente mantém o bigode e os ternos impecavelmente cortados. Sente-se velho? “Não”, responde sem vacilar. Sente, sim, as limitações e as dores que a idade impõe. E, da mesma forma que os personagens dos grandes escritores que tanto admira, como Gabriel García Márquez, Sarney reflete sobre o ocaso do tempo. Não com a perspectiva de que ele está se acabando. Mas com a certeza de que ainda há muito para viver.