A doutrina da mudez política do Exército não prosperou entre nós
O jornalista Larry Rohter, que acaba de publicar excelente biografia de Rondon, citou com admiração em sua coluna na revista “Época” uma frase dita pelo marechal em 1956: “O Exército deveria ser o grande mudo”. Zuenir Ventura, aprovando, repercutiu a citação em sua coluna do GLOBO. Como o assunto é atual, vou espichá-lo um pouco.
A frase chegou ao Brasil em 1920 com os componentes da Missão Militar Francesa, chefiada pelo general Gamelin, que fora contratada pelo ministro Calógeras, o único civil a comandar o Exército na República. Existia na França a expressão: L’Armée est la grande muette, referindo-se, naturalmente, a seu caráter apolítico. Antes, entre 1906 e 1912, por sugestão do barão do Rio Branco, três turmas de jovens oficiais brasileiros tinham estagiado no Exército alemão, que adotava o mesmo princípio. De volta ao Brasil, criaram a revista “Defesa Nacional”, de caráter exclusivamente profissional e que lhes valeu o apelido de jovens turcos. A revista só se referiu uma vez à primeira revolta tenentista de 1922. O autor, um oficial da Missão, insistiu em que a neutralidade política dos oficiais era a marca das democracias liberais. Rondon, então com 55 anos, estava no Rio nessa época e foi seguramente quando tomou conhecimento da expressão que transmitiu a Rohter.
A doutrina da mudez política do Exército, no entanto, não prosperou entre nós. Entre os líderes dos “turcos”, talvez o único que a manteve consistentemente por toda a vida foi o general Leitão de Carvalho. Suas ideias foram expostas no livro “Dever militar e política partidária”, publicado em 1959; sua atuação está descrita nas memórias que deixou. Ele se recusou a apoiar a Revolução de 1930 e todos os muitos movimentos militares das décadas de 1920 e 1930. Outro “turco” de destaque, o futuro general Bertoldo Klinger, fez suas adaptações. Já no primeiro número da “Defesa nacional”, dizia que o Exército deveria ter uma função “conservadora e estabilizante”. Para isso, as intervenções militares não podiam vir de baixo para cima, como em 1922 e 1924, tinham que vir de cima para baixo. Em 1930, vitoriosa a revolução, um Movimento Pacificador depôs o presidente W. Luís. Nomeado chefe do Estado-Maior, o então coronel Klinger propôs uma solução de Estado-Maior. Segundo ele, o destino do Brasil deveria ser o naquele momento entregue aos generais de terra e mar, que convocariam nova eleição.
Dos ex-alunos da Missão Francesa, quem mais se projetou foi o general Góis Monteiro. Depois de ter combatido os rebeldes de 1924, renegou toda ideia de mudez e aceitou a chefia militar da Revolução de 1930. Era, então, um tenente-coronel. Vitoriosa a revolta, foi logo promovido a general e publicou um livro intitulado “A Revolução de 30 e a finalidade política do Exército”, com prefácio de José Américo de Almeida. Nele escancarou as teses de Klinger. O Exército é “um órgão essencialmente político”. Lançou mão dos ensinamentos militares da Missão Francesa para usá-los contra a doutrina da mudez. Era preciso, escreveu, “fazer a política do Exército e não a política no Exército”. Só à sombra do Exército e da Marinha se poderiam organizar as outras forças nacionais. Durante o período de 1930 a 1945, dedicou-se a aplicar a ideia de Klinger: fazer do Exército um ator político unido, eficaz, falante. Os 88 movimentos militares de protesto de 1930 a 1939 foram reduzidos a seis entre 1940 a 1945.
Entre 1937 e 1945, Góis e Dutra monopolizaram o posto de ministro e a chefia do Estado-Maior. Em 1945, as Forças Armadas, em decisão conjunta dos três Estados-Maiores, derrubaram Getúlio Vargas. Adeus Missão Francesa, adeus Exército grande mudo.
*José Murilo de Carvalho é historiador