José Murilo de Carvalho: ‘AI-5 acarretou círculo vicioso de violência nunca antes visto no país’

Um dos mais importantes historiadores brasileiros, José Murilo de Carvalho afirma que o AI-5 acarretou um círculo vicioso de violência, tortura e assassinatos de dimensão nunca antes vista no país.
Foto: Reprodução/Universidade de Coimbra
Foto: Reprodução/Universidade de Coimbra

Marco Rodrigo Almeida, da Folha de S. Paulo

SÃO PAULO – Um dos mais importantes historiadores brasileiros, José Murilo de Carvalho afirma que o AI-5 acarretou um círculo vicioso de violência, tortura e assassinatos de dimensão nunca antes vista no país.

O Ato Institucional número 5, editado pelo governo militar há 50 anos, representou o início da fase mais dura da ditadura. Concedia ao presidente, entre outros arbítrios, poderes para fechar o Congresso Nacional e demais casas legislativas por tempo indeterminado e cassar mandatos. Só foi extinto dez anos depois, no último dia de 1978, em meio ao processo de abertura política.

“As medidas do AI-5 afetaram profundamente direitos civis e políticos considerados básicos numa democracia”, afirma Carvalho, membro da Academia Brasileira de Letras e autor de livros como “A Cidadania no Brasil: o Longo Caminho” e “Os Bestializados”.

Ele pondera, contudo, que o regime militar passou por fases distintas de repressão e apresentou resultados positivos na economia, o que em parte explica o saudosismo de grupos que pedem nova intervenção militar. Uma história mais isenta do período ainda está para ser escrita, diz.

O que significou o AI-5 no contexto do governo militar?
Foi uma radicalização que elevou em muito o patamar de arbítrio do regime. O AI-5 representou uma vitória da linha dura militar, a mesma que, no ano seguinte, promoveu o que se chamou na época de golpe dentro do golpe, isto é, a substituição de Costa e Silva, ele próprio um dos líderes dessa linha, mas afastado por razões médicas, e de seu vice, o civil Pedro Aleixo, por uma junta militar puro sangue.

As medidas do AI-5 afetaram profundamente direitos civis e políticos considerados básicos numa democracia. Entre 1968 e 1978, houve claramente uma ditadura militar. A dificuldade é dar nome aos anos que precederam e seguiram essa ditadura.

Na época, falou-se em ditabranda para a distinguir de ditadura. Mas como medir isso? O que seria uma ditabranda?
Apesar da dificuldade, creio ser importante, para melhor entendimento do período como um todo, registrar que ele teve uma dinâmica interna, como, aliás, qualquer época histórica.

Podemos indicar essa dinâmica traçando o percurso de algumas variáveis socioeconômicas ao longo dos 21 anos que durou o governo militar. A violência e o arbítrio, por exemplo, percorreram uma curva de tipo sino, isto é, cresceram de 1964 até 68-69, atingindo seu ápice, e começaram a decrescer a partir de 1978-79, quando foram suspensos os efeitos dos atos adicionais, foi aprovada a anistia e ressurgiram as greves operárias.

A curva do crescimento econômico seguiu padrão semelhante: começou baixa, atingiu um auge de 14%, no período mais violento, e começou a cair nos últimos anos.

A curva da inflação teve formato oposto, o de U, isto é, começou no alto, caiu e retomou a subida ao final.

Um exame das interrelações dessas três curvas pode ajudar a entender a dinâmica sociopolítica do período.

Na reunião do Conselho de Segurança Nacional, Pedro Aleixo, então vice-presidente, foi o único a se opor explicitamente à radicalização do regime. Tivesse ele mais apoio, teria sido possível evitar o AI-5?
Dificilmente. A decretação do AI-5 foi uma vitória da linha dura militar, que só seria desafiada mais tarde pelo general Geisel.

Opositores civis não tinham qualquer condição de alterar o curso dos acontecimentos. Mesmo porque havia muitos civis, políticos ou não, apoiando o governo. O redator do AI-5 foi o ministro da Justiça, Gama e Silva, um professor de direito, ex-reitor da USP.

O discurso de Marcio Moreira Alves contra os militares e a decisão da Câmara de negar a licença para processá-lo foram, de fato, preponderantes para o AI-5 ou apenas pretextos para uma medida que seria tomada de qualquer maneira?
Serviu de pretexto. A oposição se fortalecia e ameaçava o regime. Em junho de 1968, houve a Passeata dos 100 Mil no Rio de Janeiro.

O senhor acha que Costa e Silva teria mesmo revogado o AI-5 em 1969, como se diz, se não tivesse sofrido o derrame?
É o que se dizia na época. Mas, em 1964, Costa e Silva foi o principal representante do grupo militar mais radical e contribuiu decisivamente para que a intervenção militar se afastasse do padrão anterior de 1945, 1954 e, mesmo, de 1961, quando o poder foi devolvido aos civis depois do golpe.

Qual foi a pior marca do AI-5?
Ele aumentou a repressão e fez com que setores da oposição recorressem também a ações armadas. Criou-se um círculo vicioso de violência, tortura e assassinatos de dimensão nunca antes vista no país. A repressão atingiu prioritariamente intelectuais, jornalistas, estudantes e artistas, além de lideranças sindicais.

O pior legado do AI-5 foi a divisão da sociedade brasileira em grupos antagônicos, foi o divórcio entre Forças Armadas e alguns setores da sociedade, foram os ferimentos que, ficamos agora sabendo, ainda não cicatrizaram. Talvez seja necessário que decorra mais uma geração para que uma história mais isenta do período seja escrita.

Hoje muitos negam que tenha havido uma ditadura militar no país, entre eles, o presidente eleito Jair Bolsonaro. Alguns grupos pedem intervenção militar. Por que isso ocorre?
Quanto à primeira parte, é difícil dizer que não houve ditadura diante de fatos como o fechamento do Congresso, a extinção dos partidos, a censura à imprensa, as cassações de mandatos e de direitos políticos, as demissões arbitrárias, inclusive de juízes do STF, as prisões, a tortura, as mortes de prisioneiros políticos. Se isto não é ditadura, o que seria? O máximo que se pode dizer é que o período passou por fases distintas de repressão, como foi sugerido.

Quanto à segunda, é preciso repetir que o período militar ainda não é história, ainda vive na memória de muitos, sobretudo dos que foram suas principais vítimas. Mas é preciso admitir que haja também memórias positivas em alguns setores da população. É preciso lembrar o grande crescimento econômico da época, a urbanização acelerada, a grande criação de empregos, as muitas medidas de caráter social, como o BNH, o Mobral, o INPS.

Em matéria de direitos, a ditadura dos militares copiou a de Vargas: tirou direitos civis e políticos, criou direitos sociais. E, naturalmente, houve a euforia da conquista do tricampeonato mundial de futebol em 1970. A Folha publicou recentemente resultados intrigantes de uma pesquisa sobre a memória da ditadura.

Eles indicavam que a visão negativa do regime era maior na geração que se seguiu a ele do que naquela que o viveu. Como explicar isso?

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