Nestes dias, Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, se prepara para a escolha do cacique que governará a taba chamada Brasil. Passa cuspe no pente para ajeitar o cabelo com que fingirá a boniteza de que carecem os que vão cortejar a urna donzela. Espera encontrar ali a muiraquitã mítica e sagrada para enfeitar-se ainda mais e iludir-se quanto ao que é e pode.
Na incerteza, talvez não encontre nem a si mesmo, perdido na extensão do território e na identidade fragmentada, moqueada desde o seu estranho nascimento para não degradar-se. Não nasceu, foi desovado, de repente, no meio da tiguera de uma roça antiga. Despencou, preto, de dentro do ventre de uma mãe sacrificial e se tornou branco à luz do dia tropical.
Seres de metamorfoses, continuamos sendo assim, macunaímicos, à procura da muiraquitã de nós mesmos. Serão dois os candidatos: Macunaíma e Macunaíma, espelho um do outro, que se fizeram reciprocamente, negando-se na intolerância que é a mesma em nome de causas opostas. Coisa da dialética da mesmice, do mudar sem sair do lugar, do caminhar cada vez mais para ficar cada vez mais longe do destino, como descobriu a macunaímica Alice do País das Maravilhas, inventada por Lewis Carroll, clérigo e matemático. É que Macunaíma não é apenas o herói local de nosso patriotismo difuso. Ele é universal. Ele ou ela? Sabe lá, Deus.
Macunaíma é criativo. Muito religioso, não tem religião. Foi batizado três vezes: numa pia batismal da Igreja Católica, nas águas do rio Jordão, lá na Terra Santa, por um pastor neopentecostal, e no tanque batismal por outro pastor neopentecostal, aqui na terra não tão santa. Qual batismo vale? Sacramento também macunaímico? Muda de água, muda de cor.
Ou que, em outra igreja, comunga para ser visto, pois é mais importante parecer do que ser. Coisa do duplo e contraditório que Macunaíma é. Já para não falar que um desses Macunaímas foi visitar um cardeal e assinar uma declaração de amor a valores conservadores e pré-modernos de família e de escola. Tem firmeza a promessa de quem não tem firmeza no batismo? Não faltou nem mesmo, diante de uma imagem de Cristo, o gesto no dedo no gatilho por parte de funcionárias da Cúria. Que Deus é esse, santo Deus?
Uma coisa é certa, apesar do Macunaíma que somos, Deus é mais ou menos brasileiro. Mostrou isso no primeiro turno das eleições, nos muitos banimentos do castigo eleitoral. Foi injusto em alguns casos, mas não em todos. De propósito, escolheu o Estado que leva o nome de uma das pessoas da Santíssima Trindade, o Espírito Santo. Um senador da província, pastor neopentecostal, apóstolo do endireitamento do Brasil, quase candidato a vice-presidente, preferiu tentar a reeleição. Esqueceu-se de que Deus atua também no varejo, não só no atacado do poder. Gosta mais de simples eleitores do que de ambiciosos candidatos.
O senador foi derrotado por um opositor gay, da Rede, de Marina Silva, partido de esquerda, tudo oposto ao que o derrotado é e quer que os outros sejam. Deus castiga. Desinverte o mundo invertido. Põe ordem no que a intolerância e o autoritarismo, adversos à democracia, viraram de cabeça para baixo. Na suposição falsa de que o mundo subvertido pelo uso em vão do nome sagrado é o verdadeiro mundo de Deus. Nesse processo, o magno saiu mínimo.
O trono republicano já está quase vago, à espera do traseiro que o ocupará. O que Macunaíma nele fará? Não se governa um país cheio de surpresas, como este, com o traseiro. Nem com grunhidos. A incerteza macunaímica nos sugere que é melhor rezar. Reler a Constituição também ajuda. Ficar de olho nos transgressores, cuidar para que as instituições sejam mantidas e respeitadas, doa a quem doer. O poder depende do cérebro. Já tivemos governantes de cérebro pequeno, em que cabia pouca coisa mais do que frases feitas, truques publicitários, lugares-comuns, inquietações prosaicas, expressões de uma pobre ideia de pátria, impatriótica. Nada muito diferente de conversa de botequim em fim de dia.
Macunaíma é, culturalmente, expressão do Brasil, mas não tenho certeza de que em sua incerteza constitutiva possa de fato personificar a pátria. A terra da muiraquitã dos nossos desejos, mas não necessariamente de nossas esperanças. São coisas diferentes.
O desejo é humano, a esperança é sobre-humana, pede humildade e renúncia, competência e coerência, respeito, sobretudo para compreender as enormes contradições de Macunaíma e nelas introduzir a gratuidade da luz do conhecimento e do discernimento. Esse é o mundo do espírito, avesso à coisificação e à precificação que o desfigura e trai. O espírito não é a mercadoria nem o dinheiro que escravizam. Antes é sua negação, a negação que liberta.
* José de Souza Martins é sociólogo. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “A Sociologia como Aventura” (Contexto).