Das pranchetas do economismo ideológico nunca saiu nada socialmente inteligente
Dirigentes de três dos maiores bancos brasileiros apresentaram, ao vice-presidente da República, um plano para a Amazônia. Mas um plano que está muito longe de reconhecer e enfrentar os aspectos mais graves da problemática realidade econômica e social da região, de seus habitantes e do país, no que a Amazônia nele é ou pode ser.
Convém lembrar que, na perspectiva do que já foi chamada de Amazônia Legal, aquela região constitui bem mais da metade do território brasileiro. As personagens e os destinatários da proposta, no entanto, nela correspondem a muito menos do que é a população da Amazônia problemática e em crise.
Nada diz de significativo aos nossos compatriotas indígenas e aos desvalidos da economia tradicional e camponesa, cuja situação de risco e abandono é o que tem motivado as restrições econômicas ao que da Amazônia devastada e excludente buscam os mercados dos países ricos. Das pranchetas do economismo ideológico nunca saiu nada socialmente inteligente, embora lucrativo para poucos a curto prazo e destrutivo para a nação a prazo longo.
Num país como este, suas peculiares características sociais e humanas são muito diferentes do que se pode ver, compreender e interpretar desde as estreitezas neoliberais e monetaristas de Chicago. A boa vontade dos bancos ganharia sentido se temperasse o poder dos economistas dessa corrente com o bom senso investigativo e interpretativo dos cientistas sociais, que há mais de meio século têm estudado sistematicamente a Amazônia e os problemas sociais dos amazônidas.
São esses cientistas que podem apontar na realidade social e econômica o que de fato é problema para o país. Além do que, sem ouvir e compreender as vítimas, dificilmente se chegará a uma proposta que convença os inquietos e desconfiados lá fora e aqui dentro. O Brasil está sendo colocado diante do falso dilema de civilização ou lucro.
Os que dizem agora que querem salvar a Amazônia, com as ciências sociais enxergariam uma Amazônia também indígena, cuja cultura é estigmatizada pelos leigos e improvisadores que menosprezam os seres humanos e suas alternativas para as estreitezas mentais do primado do lucro e da lucratividade. Os que menosprezam porque pensam o mundo e a vida na perspectiva estéril da mentalidade das classes ociosas, como as definiu Thorstein Veblen (1857-1929).
A proposta apresentada é para acalmar os que, nos países desenvolvidos, inquietam-se com os desdobramentos políticos na opinião pública interna de restrições significativas, de natureza social e moral, à importação de produtos originários de uma economia suspeita porque delinquente e socialmente incorreta.
Faltou na proposta o remédio para as ilegalidades na realidade amazônica, da grilagem ao trabalho análogo ao do escravo. Os poderes das economias dominantes têm medo das consequências políticas da consciência social crítica comprometida com a primazia da condição humana.
O que os proponentes, aparentemente, não perceberam é que as objeções e restrições aos produtos da Amazônia não têm a ver somente com queimadas e com o modo de produzir de uma economia retrógrada, ainda que aparentemente moderna.
Fala-se na necessidade de uma boa propaganda que diga ao mundo que o Brasil cuida do ambiente e cuida dos indígenas. A fumaça da floresta queimada e o grito dos que padecem os efeitos da predação e da iniquidade lucrativas dizem que não. O interesse pela Amazônia tem sido, historicamente, limitado aos imediatismos do capitalismo rentista. Não se trata de usar a terra e a natureza, mas de consumi-las, o que é a negação do próprio capitalismo.
O problema da Amazônia já havia chegado à consciência das pessoas esclarecidas de diferentes países há meio século. A questão indígena, a da violência fundiária e a ambiental brasileiras já estavam em debate na Europa e mesmo nos anos 1970, quando a voracidade da economia neoliberal tentou impor-se com base na falsa premissa de que a Amazônia estava disponível para ser ocupada predatoriamente.
Há décadas, indígenas brasileiros têm comparecido a debates, conferências e manifestações na Europa para expor a situação em que se encontram. O eminente e lúcido cacique Raoni Metuktire, do grupo linguístico kaiapó, tem sido ali recebido como herói da humanidade, com seu imponente e belo diadema plumário e seu solene batoque labial e ritual, impondo respeito e acatamento. Coisa que o governo atual não consegue.
Raoni é um dos melhores diplomatas populares brasileiros, porque entre os que têm poder tem o que falar e sabe falar a quem sabe ouvir O interlocutor do verdadeiro Brasil. Significativamente, foi depreciado pelo presidente brasileiro na assembleia-geral da ONU em 2019.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP, Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Fronteira – A degradação do Outro nos Confins do Humano” (Contexto).