Disputa pelo foro privilegiado reflete o espírito de casta
Judiciário e Ministério Público perderam a bússola em disputas pelo foro privilegiado —mecanismo institucional que, para muitos, simplifica a rota da impunidade para poucos. Tem tribunal estadual anulando decisão do Supremo e procurador em luta contra procuradores, para garantir tratamento especial a políticos suspeitos de crimes comuns.
Há 55 mil agentes públicos nesse cercadinho judicial. Rio, Bahia e Piauí abrigam 11 mil privilegiados. A lista vai do presidente da República a vereador; de senador a reitor de universidade; de juiz a delegado.
Semanas atrás, o Tribunal de Justiça do Rio deu a regalia a um filho do presidente, Flávio Bolsonaro, político notório pelo talento para lucrar muito, várias vezes e rapidamente.
Era deputado estadual quando comprou uma quitinete na Prado Júnior, em Copacabana. Revendeu-a 60 semanas depois com o extraordinário lucro de 292%. A valorização na área havia sido de 11% (índice FipeZap). Fez mais 18 negócios assim na Barra, Botafogo e Laranjeiras.
Personagem do inquérito sobre rachadinhas e lavagem de dinheiro na Assembleia do Rio, o ex-deputado reivindicou no STF o foro privilegiado de senador. O juiz Marco Aurélio Mello rejeitou. Ele apelou ao tribunal estadual, que inovou. Deu-lhe o privilégio e transformou em letra morta a decisão do Supremo.
Procuradores do Rio recorreram contra a inovação da Justiça fluminense. Entrou em campo o procurador-geral, Augusto Aras, como relatou a repórter Bela Megale. Aras acha que o filho do presidente merece ficar longe do juízo de primeira instância. Agora, o procurador-geral batalha para derrotar os procuradores do Rio no Supremo. Quer ver rejeitada a decisão de Mello, que foi baseada na jurisprudência do próprio STF.
Há uma lógica de poder nessa aparente anarquia institucional — a de que alguns são mais iguais que outros. A disputa pelo foro privilegiado reflete o espírito de casta no serviço público: 80% dos beneficiários estão no Judiciário e no Ministério Público, mostra estudo de João Cavalcante Filho e Frederico Lima, consultores legislativos.