José Antonio Segatto: Desventuras de uma revolução

Despótica e hostil à democracia, a gerontocracia cubana perdeu o encanto.
Foto: Sven Creutzmann/Mambo photo/Getty Images
Foto: Sven Creutzmann/Mambo photo/Getty Images

Despótica e hostil à democracia, a gerontocracia cubana perdeu o encanto

Há seis décadas, em 1.º de janeiro de 1959, uma coluna rebelde tomou Havana, desencadeando um processo revolucionário. Encetada dois anos antes por um grupamento guerrilheiro em Sierra Maestra, a insurreição levou à deposição da ditadura corrupta e cruel de Fulgêncio Batista (1952-59) e sua substituição por um governo nacional-democrático , a seguir metamorfoseado em regime de cunho socialista, sob a liderança de Fidel Castro.

A sublevação vitoriosa, de fato, só foi possível dado o amplo apoio sociopolítico nas cidades: Movimento 26 de Julho, organizações sindicais e estudantis, partidos liberais e comunista, etc. Entretanto, forjou-se, em seu curso, uma versão mítica da revolução, segundo a qual ela só teria sido exequível pela façanha de um pequeno grupo de destemidos guerrilheiros comandados por Fidel Castro e Che Guevara – este, sobretudo após seu assassinato na Bolívia, em 1967, ganhou aura romântica e foi transformado numa espécie de grife, ícone da juventude rebelde.

Desde o princípio, ressalte-se, a revolução cubana tornou-se inconveniente para os Estados Unidos, cuja reação – compressão, rompimento de relações diplomáticas, financiamento da contrarrevolução (invasão da Baía dos Porcos), bloqueio econômico, etc. – empurrou o novo governo para a esfera de influência soviética.

Já em 1961 foi proclamado o caráter socialista da revolução, cujos desdobramentos a impeliram para a reprodução do regime soviético, adaptando-o aos trópicos caribenhos: propriedade estatal dos meios de produção, partido único, abolição dos direitos civis e políticos, coibição do dissenso, estabelecimento de polícia política de monitoramento e coação político-ideológica e da sociabilidade, supressão dos resquícios de democracia. Em consonância a isso o Partido Comunista Cubano (PCC), refundado em 1965, tornou-se partido-Estado. Sua adoção pela URSS, no entanto, com os crescentes préstimos econômicos e militares, políticos e culturais, implicou a instauração de um tipo de socialismo dependente e subsidiado.

Congruente com esse projeto-guia, em 1967 o Estado cubano, secundado pelo Partido Comunista da União Soviética (PCUS) – numa hábil operação política -, fundou a Organização Latino-Americana de Solidariedade (Olas). Objetivando tirar o foco da pressão norte-americana sobre a ilha, deveria ser um instrumento multiplicador de movimentos revolucionários no continente, ou seja, espécie de estado-maior da revolução – apoio político, logístico, financeiro, bélico -, disseminaria focos guerrilheiros na região. Pequenos grupos de elite, vanguarda armada revolucionária, teriam o dever de replicar o exemplo cubano nos diversos países. Da dissidência dos partidos comunistas e de outros grupamentos ou seitas esquerdistas despontaram movimentos guerrilheiros de variadas espécies em países como Guatemala, Venezuela, Colômbia, Peru, Bolívia, Brasil, Uruguai, Argentina e outros.

À exceção da Nicarágua, onde a Frente Sandinista tomou o poder em 1979, nos demais lugares não só malograram, mas em muitos casos resultaram em tragédias políticas e até mesmo humanitárias. A reação brutal de setores dominantes por meio das Forças Armadas, com auxílio americano, criou condições para golpes de Estado e para o estabelecimento de ditaduras atrozes. Caso emblemático foi o do Chile, em que se abria, segundo Eric Hobsbawm, com a eleição de Salvador Allende “a perspectiva emocionante de uma transição pacífica sem precedentes para o socialismo”.

No caso chileno, a ação cubana desempenhou papel considerável na desestabilização do governo da Unidade Popular. Em 1972, Fidel Castro prorrogou sua visita ao país por um mês, acompanhado por insignes personagens do seu serviço de inteligência, que lá se instalaram por tempo alongado, pressionando o governo e/ou atiçando ações aventureiras de grupos e movimentos esquerdistas.

Além disso, a revolução cubana constitui um marco divisor na história da esquerda na América Latina. Os partidos comunistas que então iniciavam processos de renovação de seus projetos e de suas práxis – valorização da democracia, adoção da via pacífica e processual para o socialismo, abandono de compreensões estagnacionistas – sofreram uma inflexão e se defrontaram com a obliteração de suas intervenções político-institucionais no âmbito do Estado de Direito Democrático.

No momento em que o projeto da Olas já havia dado provas do seu infortúnio e a democracia (re)emergia na América Latina – em coincidência com o colapso do socialismo real e a dissolução da URSS -, o regime cubano, consorciado com o Partido dos Trabalhadores (PT), (re)fundou órgão de articulação no continente sob sua orientação. Em 1990 foi realizado o 1.º Fórum de São Paulo, com a participação de dezenas de partidos e movimentos, grupos e seitas de procedências distintas da esquerda. Tratava-se de substituir a estratégia insurrecional pela luta político-institucional.

A iniciativa teve relativo sucesso nas décadas seguintes, com a ascensão ao poder do bolivarianismo na Venezuela e em países andinos, do petismo no Brasil, da Frente Ampla no Uruguai, do peronismo na Argentina, do sandinismo na Nicarágua, etc. Quase todos eles, porém, com raras exceções, experimentaram a desventura do domínio e do mando em grande medida por não terem compromisso com os valores e procedimentos democráticos.

Se de início, nos anos 1960, a revolução cubana exerceu razoável fascínio, os rumos que tomou com o tempo, no entanto, levaram-na a perder, gradativamente, o encanto – regime de padrão autoritário-burocrático, de feitio castrense , dirigido por uma gerontocracia despótica e hostil à democracia, seu destino foi desventuroso, redundando num socialismo miserável.

*José Antonio Segatto é professor titular de sociologia da Unesp

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